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Última chamada antes do pôr do sol

Foto do escritor: Matheus Lopes Quirino Matheus Lopes Quirino

\\ CADERNO DE ANOTAÇÕES

Vou até uma cabine telefônica e as fichas caem no chão. Não existe mais ternura, mas tento as recolhendo depressa para ligar

Por Matheus Lopes Quirino

"Evening Falls" (1964), de Rene Magritte.

Para Caio Fernando Abreu 


O céu está rosado, ao final deste texto a noite cairá. Estamos caminhando rumo ao crepúsculo, os pássaros gralham, loucos e rápidos, parecem uns gravetos se estalando com asas rumo ao horizonte. É uma tarde fria, não das londrinas, cuja névoa encobre até as pontas dos narizes mais arrebitados. Um texto está para nascer, como a noite nasce da costela de algum instrumento do jazz, ou de um passeio à moda dublinense, ou das capas dos lordes que andavam pelas ruas de ladrilho da Inglaterra vitoriana, ou de qualquer rabo de gato preto que cruze a fronteira entre o azar e a sorte. 


Estou andando pelo centro de Barcelona de terno engomado, gravata borboleta e cartola. Dou boa noite a uma estrela, Esmeralda, uma corista que vi se transformar em mulher a partir de um tinteiro. É a cena de um roteiro, ali, cuja personagem se joga nos braços de um marinheiro, recém-dispensado do convés para tentar a sorte como michê por aquelas bandas da cidade grande. É uma corista e um marinheiro, lembro de Querelle, de Fassbinder, como puxo automaticamente Oscar Wilde da capa dos Lordes ingleses que esvoaçam. Por coincidência, é noite, dentro da noite, segredos se chocam despertando os vaivéns de homens e mulheres que não costumamos ver ali à luz do dia. 


Afinal, o set é do lado da Boca do Lixo, lembra um pouco São Paulo, e talvez seja mesmo, sem essa conversa hispânica, é só o bar do sancho enquanto subo a Augusta para assistir um cinema por ali, depois devorar uma pizza ou um árabe pelas redondezas, ver meus amigos, me soltar como um balão de festa que vai pelos ares. De repente, sinto imensa vontade de correr, o sol está indo embora e eu esqueci. Vou até uma cabine telefônica e as fichas caem no chão. Não existe mais ternura, mas tento as recolhendo depressa para ligar. 

Uma voz rouca atende o telefone. O mundo desmorona. Eu sei que Mercúrio está retrógrado, que os homens passam blasés em seus ternos e suas capas, as máscaras caem como em outros tempos, como se os médicos da Peste esquecessem as ervas aromáticas, ou um compositor suíço errasse a deixa em um dos movimentos, ou Neruda não tivesse escritos os últimos poemas, ou o amor existisse ainda em Copacabana, e tudo fosse coincidência, mas agora o sol já se apagou e a noite vem como o estalo posterior ao chiado depois da última palavra ecoada na chamada telefônica. 


pi-pi-pi


É uma música de jazz que se confunde com o tranco de um carro e sua freada. É mais um dia vagando pelas sombras da noite, como um gato sem capa, como um poeta cancioneiro sem flauta, como o céu sem sol, como um escritor sem papel, e de repente, o telefone volta a tocar. Desta vez eu atendo e a voz já não é mais a mesma. Uma mão está em meu ombro, e já não sei como agradecer cada estrela de cada céu. Estava em alta velocidade, como o hit que ecoava na noite daquele inverno de 1993. 


I’m staring down a mile of disappearing track Is this the best that we could do

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