\\ ALEXITIMIA
Ele tem o olhar ávido. Olha muito. Observa a calmaria, se perde na paisagem, mergulha num lugar denso e restrito a ele mesmo.
Por Lia Petrelli
As cenas que se desenrolam linearmente — ou não — acontecem numa fresta entre prédios. Uma longa e tardia memória de histórias que se cruzam e moram uma em cima da outra.
Das vidas paralelas, só conheço partes fragmentadas, emolduradas pelas janelas da sala, de frente para mim.
No penúltimo apartamento mora um casal.
Me lembro como se fosse hoje quando chegaram para visitar o apartamento. Logo depois se mudaram para lá. A rotina deles passou a fazer parte do meu programa pessoal.
A mulher parece ser a que mais trabalha, quem menos fica em casa, quem chega tarde toda terça, quarta e quinta. Nesses dias, por volta da meia-noite as luzes que antes acessas, passam a jorrar o colorido da TV, religiosamente por meia hora. Depois o silêncio se instaura.
O homem talvez seja arquiteto, ou escritor (quem sabe?), passa horas andando para lá e para cá com um lápis na mão, rabiscando qualquer coisa que seja, com óculos que por descuido podem cair da ponta do nariz. Vez ou outra passeia com a xícara vermelha na mão, certas vezes a pousa no parapeito. Ele tem o olhar ávido. Olha muito. Observa a calmaria, se perde na paisagem, mergulha num lugar denso e restrito a ele mesmo. Permanece por horas, minutos, instantes, em longa, média ou curta meditação.
Na segunda-feira eles tomam café da manhã juntos, pertinho da janela. Depois que a mulher se apronta, vem dar um beijo nele e sai. Deve trabalhar num escritório: camisas sociais não mentem. Depois desse ritual, ele abre o livro da semana e fica ali por uma hora, às vezes mais; se estica todo num alongamento que acorda o corpo, pega a vassoura e sai limpando a casa. A janela só limpa uma vez por mês.
No começo sempre tinha uma florzinha diferente no fino vaso sobre a mesa.
Hoje essa magia acabou.
Presenciei o esfriamento da relação. De domingo a mãe de um deles vem na hora do almoço. Fica até o pôr do sol.
De um tempo pra cá, nesses encontros, o homem vem se perder na paisagem.
Às vezes, de quarta-feira, vinham uns amigos para acompanhar o futebol de noite, antes da mulher chegar do trabalho, outras vezes ele que ia, porque o silêncio se tornava ensurdecedor. Nos últimos meses ele tem chegado bêbado toda quarta, até quebra uns copos, xinga alto. Aí tudo emudece e o breu toma conta da casa, até as luzes da TV voltarem a piscar.
Lembro que no começo os corpos deles viviam mais juntos. Tinha dia até que ele deixava que ela participasse da sua meditação, o abraçando por trás: do dorso do homem nasciam dois braços femininos que o acarinhavam.
Tinham noites de vinhos e salgadinhos — eram minhas noites preferidas — os via bailar pela sala, à meia-luz de um abajur, rodopiando bobamente uma valsa mal dançada. Todas as músicas eram bonitas.
A cada quinze dias a mulher estende os lençóis molhados no parapeito, bem onde a luz do sol bate. Hoje ele nem ajuda mais, inclusive, acorda muito mais tarde do que ela, aí ela é quem passa horas, minutos, instantes na meditação matinal.
O ar de melancolia apareceu mês passado.
No último andar mora uma mulher loira, cabelos ondulados, curtinhos, estilo anos 50. Talvez ela more aqui a muito mais tempo do que eu, me lembro de sempre a ter visto.
Ao contrário do casal, ali naquela casa a rotina praticamente não existe. Sei bem que a mulher faz muitas coisas diferentes, mas assim como não sei do que vive o casal, sei muito menos do que vive ela. Gosto das roupas que usa, sempre brilhantes. Quando o sol resolve aparecer, os brilhinhos que veste refletem para as mais variadas direções.
Já presenciei declínios e ascensões da vida dela. Por ser imprevisível, também se tornara um dos meus programas preferidos. Sem dúvidas ela gosta tanto do dia quanto da noite. Ela chega em casa muito depois que a luzes do andar de baixo se apagam e tem dias que ela se preocupa com os vizinhos, mas tem dias que ignora qualquer vida que aconteça em paralelo à dela mesma.
Por vezes chega acompanhada e estende a noite para além do amanhecer. Posso dizer com segurança que gosta muito de festas no mesmo tanto que gosta de sua solidão. Chega a ser cômico o quanto pode estar tranquila, radiante e feliz durante a noite e exatamente no dia que segue, estar no poço profundo da choradeira.
Assim como o homem do andar debaixo, gosta de tomar café dependurada na janela, observando a vida, apesar do silêncio ser pouco aparente: faz quase tudo acompanhada das mais variadas trilhas sonoras e as faxinas só acontecem quando bem entende.
Outro dia chegou em casa com duas moças e dois homens e os cinco arrastaram-se madrugada adentro em discussões intensas e em bom tom sobre a inexpressividade da vida humana.
Existe uma outra mulher que, vira e mexe, passa um tempo com ela, como se resolvessem que durante uma, duas ou três semanas, não querem viver sozinhas, e acabam se juntando por um tempo. Em semanas assim o clima de romance ondula pelas janelas a fora. Apesar de ser essa a pessoa que vejo com mais frequência dentro da casa da mulher do último andar, os dias e noites são compartilhados com os mais variados tipos de corpos. Não existe nenhum tipo de constância.
O contraste entre os dois apartamentos é gritante. Deve ser por isso que viraram meus programas preferidos.
Certa noite a mulher estava decorando a casa com papéis crepom, luminárias japonesas, salgadinhos e baldes com gelo pela casa. O som já estava alto o suficiente e vi no andar debaixo a mulher se debruçar na janela, tentando inutilmente esticar o corpo na direção de cima — claramente incomodada, mas também com certa curiosidade.
-Ei! — gritou lá debaixo ao ver os braços da vizinha de cima se mexerem, ajeitando qualquer coisa na janela. Ela se debruçou e deu um sorriso, desmanchando a expressão incomodada da vizinha debaixo.
-Oi! Estou esperando uns amigos! É meu aniversário. Quer vir na festa? — perguntou feito uma criança. A vizinha debaixo abriu um sorriso amarelo, constrangida por estar com dor de cabeça. Elas trocaram mais algumas palavras e depois a vizinha de baixo sumiu dentro do apartamento.
Algumas horas se passaram e a casa da mulher do último andar foi recebendo cada vez mais gente. Pouco tempo depois enxerguei o casal do penúltimo andar dançando na mesma intensidade que os convidados, mesclando-se entre a paisagem colorida.
Era uma festa à fantasia, muito embora poucas pessoas usassem máscaras carnavalescas.
Os moradores do penúltimo andar estavam com roupas que nunca imaginei que pudessem possuir: o homem estava sem camisa, de suspensório, com tapa olho e chapéu vermelho. A mulher trajava um vestido amarelo de lantejoulas e uma tiara que envolvia todo o topo da cabeça, com uma pena esverdeada — ou seria efeito da luz?
A festa rolou até quase de manhã. Quando o sol despontava, estavam a anfitriã, o casal e mais duas ou três pessoas sentadas perto da janela, conversando e ainda bebericando copos neon. O casal só desceu para casa muito tempo depois de terem ficado só os três em conversas intensas, como se fossem amigos de longa data. Me ocorreu que com certeza a vizinha do penúltimo andar ficara contente de ter se incomodado com a música alta. Sinto as vezes que pessoas muito envoltas em suas rotinas precisam de empurrões que vêm de fora para se manterem sãs.
O dia seguinte passou no mais puro silencio, tanto o andar de cima quanto o debaixo não vieram até a janela.
Depois desse episódio a visita entre os apartamentos tornara-se comum: viraram bons amigos.
A vida monótona do penúltimo andar ainda parecia caminhar para o esfriamento da vida particular. Vez ou outra a mulher aparecia no andar de cima enquanto o homem ficava imerso em suas meditações. Por vezes, também, acontecia o contrário: a mulher é quem permanecia em casa e o homem subia. Ele se mostrou um ótimo dançarino e talvez os vizinhos compartissem do mesmo gosto musical.
O tempo passava e os dias que a mulher do penúltimo andar chegava tarde aumentaram: segunda, terça, quarta, sexta… A visão do homem imerso em pensamentos tornava-se cada vez mais recorrente, até o dia em que a mulher não voltou mais.
A aparência do homem do penúltimo andar era deplorável, se passaram dias, semanas sem fazer a habitual limpeza com a vassoura. Já não lia seus livros matinais nem esticava o corpo. Sem dúvida passava mais tempo na janela, em completo silêncio, absorvido num lugar que não era a paisagem.
Certa noite o homem estava acompanhado de três amigos, eles tocaram um rock melancólico horrível e descompassado. Os quatro vestiam a mesma camisa rosa enfeitada de bolinhas azuis claras. O dono da casa tocava a guitarra como se nem estivesse por ali: o olhar fixo para fora da janela, os braços pareciam mecânicos, só reproduzindo movimentos de vai e vem trocando notas sem sequer saber que o fazia.
Nesse meio tempo a mulher do último andar chegou em casa animada. Estava com um vestido preto, mangas bufantes, brilhos por todas as partes. Se debruçou na janela e falou mais alto do que os instrumentos que estavam sendo tocados, chamando o vizinho para subir. Ele escutou, avisou que já iria e sumiu dentro do apartamento. A mulher continuou chamando e os amigos tentaram avisá-la que ele já havia subido, inutilmente porque a mulher não escutava. Até que entrou. O homem deve ter tocado a campainha.
Por muito tempo permaneceram lá dentro, a luz acessa e nenhum barulho. Fiz questão de entrar no apartamento do último andar — minha curiosidade não gosta de ficar de fora. Encontrei os dois sentados no chão, a cabeça apoiada na parede da janela, olhando fixamente para frente. Não se encaravam e o silêncio suspendia a respiração.
A mulher tinha os olhos borrados de maquiagem preta, como se tivesse os esfregado de sono. O homem ainda tinha a mesma intocada roupa rosa de bolinhas azuis.
Os dois pareciam estar imersos em pensamentos muitíssimos distantes, até que a mulher rasgou o silêncio.
-Me conta o segredo mais profundo da sua alma? — perguntou sem piscar, ainda olhando fixamente para o que quer que estivesse vendo à sua frente.
-Rompemos. — respondeu o homem, igualmente fixo no invisível.
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