\\ ANTENA
A poesia de sons e palavras chega na análise férrea dos efeitos do vírus — emocional e fisicamente
Por Lia Petrelli
Hoje mesmo, 25 de Dezembro de 2020, Mário Wamser lança seu terceiro álbum autoral, Virar (ao final do texto você lê na íntegra o release oficial).
Bem, como bem fala a arte que se apoia no coletivo, propus a Mário para que fizéssemos uma matéria sobre o financiamento coletivo que rolou para o lançamento deste álbum, mas, como a vida corre (dê pressa) optamos por uma versão mais intuitiva e múltipla do lançamento oficial.
Lá no dia 27 de novembro o multi-instrumentista me enviou um áudio propondo que me mandasse o álbum completo antes do lançamento para que eu pudesse escutar e fazer um texto sobre o trabalho completo. Como boa curiosa que sou, topei na hora.
Conheci Mário quando estive no Rio de Janeiro, onde o mineiro se radicou, numa mágica noite acompanhada por timbres de diversos violões; de lá para cá, viemos conversando a beça, tanto que vira e mexe resgato algumas conversas sobre filosofia para apaziguar os dias nervosos desta quarentena — até porque não só de arte sobrevivemos, os lugares teóricos onde bebemos têm grande valia dentro dessa mistura rigorosa que é o fazer artístico, continuamente.
Uma das sugestões de Mário fora fazer uma análise crítica de seu terceiro álbum Virar, composto durante este turbulento ano de 2020 e eu, ao recebê-lo mergulhei no tipo de escrita que gosto de chamar “experiência”, que talvez tenha alguma coisa de crítica contida — por mais que adore escrever sobre música, não sou lá uma ávida conhecedora das técnicas imbuídas em tais composições e feituras.
O que escrevo acontece assim: acompanho o que escuto pelo corpo e vou anotando as sensações que me tocam, depois venho aqui nessa máquina e costuro tudo bonitinho.
Virar, novo álbum autoral de Mário Wamser
Faixa a Faixa
A uma hora da tarde dei play na primeira música, “Perdi Também Aquele Medo”, me ambientei num disco ondulado, onde as luzes eletrônicas salpicadas conversam com a arte da capa. Intuitivamente a voz se aconchega para acompanhar as aberturas melódicas da letra, as mãos acompanharam o ar entendendo cada vez mais profundamente — depois de ouvir mais algumas vezes — o que é dito: “Tanto gritei perdi a voz, perdi também aquele medo de tirar do meu ser o que é segredo, de amar qualquer um que aqui passar”, lembrando do desamor proposto, vez em quando, por nossos governantes, ao que vem a bela resposta: “Mas limites não há se a gente quer quebrar…”
Seguindo a nostalgia de algo que não sei o nome, “Era assim” me mostra o som se esparramando pelo espaço, marcado por uma bateria que leva o corpo a flutuar. Vagueio em ambiente suspenso, lançado de volta à terra pelo baixo e, logo de volto ao espaço, carregada pelo piano retrô. “E tudo o que era tão pequeno veio a engrandecer num pulsar estranho”. Flutuar acontece na guitarra re-cantada pela voz de fundo, e os estalinhos do dedo com certeza seguem o ritmo deste lugar que visa o “fim dessa coisa ruim”, jorrando certo dourado no abismo incerto do que será que venha a ser.
A terceira música, “Outro lugar” chega abrindo a porta da sala em laranja profundo apresentando um baixo choroso que tem muito a dizer, “erro não existe, pode ser que fiques triste”, e no meio da música o corpo se desfaz sentindo o pôr do sol visto do cais pelos olhos de um outro ser. O que senti foi o vento através desse outro corpo recolocado em mim mesma, me permitindo escutar “sem saber como iria, me atirei, fundo em outro lugar”, e a guitarra que chora, chora, chora. Chique (foi o que minha boca disse sem pedir licença). Talvez o balanço dessa música me transporte para um lago meio afoito pelo vento da tarde, não sei definir ao certo, no fim da música a voz já acompanha esse balanço como que por intuição, mesmo.
“Há nada” me provocou diretamente a pensar “que letra linda!”, logo nas primeiras palavras. A atmosfera dessa faixa é diferente das outras, expandindo o que vi como galáxia. Incrivelmente dentro do mar, também numa gota d’água e no traço de uma gaivota no céu — tudo ao mesmo tempo. Ouvi o álbum mais de uma vez e, com certeza, essa mergulhou e a classifiquei como minha preferida. Sou inclinada a pensar que a letra que atravessa algumas músicas contribui para esse lugar preferido, mas depois (em silêncio), fiquei pensando e absorvendo o ambiente místico onde o nada acontece, afetada pelo som deste lugar “Não fui, não sou nem mesmo ainda serei. Grande e ilusão ser”.
A quinta música do álbum “Parece Que Já Te Conheço” continua nos lançando a uma atmosfera cósmica. Durante a música, percebi que esse álbum nasce do micro e transita entre o macro de uma vertigem familiar. A viagem por dentro e fora do corpo tem um tom meio roxo, como se misturassem o surfar nas guitarras que passeiam dentro do vermelho das veias com o ser lançada diretamente ao buraco negro ou a uma estrela em combustão. Sensações vívidas desse ano isolado. Sou uma grande fã das notas cantadas e acompanho como se já houvesse escutado milhões de vezes a melodia. A proximidade sensória me parece ter alcançado — ao menos em mim — o objetivo febril da tontura lúcida.
“Há de Prosseguir” começa com estrelas, ainda no universo que nos lança Virar a aventura poética do álbum da início à queda de volta à Terra: o mesmo cais que Mário nos apresenta na terceira faixa do álbum, tão rapidamente nos lembra da gravidade que virá como que “o ato de enfrentar é também o Ás de qualquer cisão.”
Daí que na sétima faixa, derivada da oitava, como que concebendo ou gestando o encarar de frente o que nos assola, os sons anunciam outro universo, que desta vez corrói o que há por dentro; como se fosse a destruição e, no instante que segue, aparece como algo de explosivo, (como só poderia, poético — anotei em meu caderno, enquanto o corpo se adequa a essa nova forma de som: distante, mas nem tanto, do contorno do terceiro trabalho de Mário).
O que senti logo de cara com o começo de “Vírus Virar”, última faixa do álbum, foi arrepio imediato no lado direito do topo da cabeça. Se bem que me lembro, escutei essa música pela primeira vez em uma das lives que Wamser costuma fazer em seu Instagram — mas de uma sensação completamente diferente –, a música permeada por outros instrumentos me trouxe um pouco do Brasil que habitei de longe nas primeiras faixas do álbum. A poesia de sons e palavras chega na análise férrea dos efeitos do vírus — emocional e fisicamente — “Sufixo ite inflama a elite, doente eles estão”, continua cantando o violão mineiro depois da letra ir.
Virar, no que senti ao escutar, poeticamente narra a partida para uma aventura que existe entre a camada de ozônio e a atmosfera que nos separa do universo, que mantém o oxigênio vivo para que possamos respirar.
Claro, digo isto completamente afetada pelo período pandêmico tanto quanto pelos efeitos intrínsecos do vírus — que agora já se mescla entre efeitos corpóreos e situações políticas.
Deixo aqui a sugestão para que você escute o álbum completo e tire suas próprias conclusões, afinal de contas, a poesia característica dos trabalhos de Mário Wamser é ampla o suficiente para nos atravessar individualmente.
Agradeço Mário pela confiança, pelo trabalho e pelas mensagens trocadas.
Release oficial:
Mário Wamser lança seu terceiro álbum, “Virar”
Mineiro radicado no Rio de Janeiro, Mário Wamser lança Virar no dia 25 de dezembro, seu terceiro álbum autoral que foi concebido e gravado durante o confinamento que se estendeu por todo o ano de 2020, transformando sua casa em um estúdio. A temática do trabalho reflete a experiência desse período particular, com letras que abordam desapego, o confrontamento com a morte, liberdade, novas possibilidades de relacionamentos e fluxos de mudança.
A produção e arranjos denotam uma sonoridade com toque vintage (anos 70 e 80) sem deixar de ser atual, ressaltando o cuidado com a harmonia, característica do artista, e sobretudo da música mineira que tem grande influência na sua carreira, uma vez que, além de ter nascido em Minas, Mário teve sua formação em violão na Bituca Universidade de Música (Barbacena/MG), uma universidade livre apadrinhada por Milton Nascimento, onde o músico pródigo entrou aos 14 anos para estudar com grandes mestres como Gilvan de Oliveira e Ian Guest. Em seguida, aos 18 anos, ganhou o famoso prêmio BDMG, que proporcionou um aprofundamento da sua prática junto ao violonista mineiro Weber Lopes.
“ ‘Virar’ é um álbum que tem uma relação muito forte com 2020, então fiz questão que fosse lançado agora, mesmo que faltando cinco dias para o fim do ano ”, declara o artista.
Virar sai pelo selo Porangareté contando com oito faixas inéditas, sendo que uma delas é uma vinheta (Vírus) derivada da música Vírus Virar, que fecha o disco.
Colecionando elogios de grandes nomes da música brasileira como Ivan Lins, Toninho Horta e Humberto Gessinger, Mário é um artista em turbulência e vem se destacando na cena independente, seu último álbum Incertezão, 2019 e ele já tem planos para outro em 2021. Ao contrário de Virar, que nasceu do clima de isolamento imposto, Incertezão foi um projeto que envolveu muitas colaborações de artistas como Zé Ibarra, André Prando, Mihay, Mari Blue, Dônica e Puppi (que fez a produção musical).
FICHA TÉCNICA VIRAR Voz, piano elétrico, guitarra, baixo, sintetizador, violão, bateria e percussão: Mário Wamser Mixagem: Mari Blue Masterização: Diogo Guedes Gravação: Mari Blue e Mário Wamser Arte (capa): Mário Wamser e Mari Blue
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