\\ CRÔNICAS
“meu filho, vamo’ cortar com o papo e partir pra toca do jacaré, melar os dedo’ no pântano e trepar no Carandá?" Mas a crocodilagem só continuava....
Por André Vieira
Judit I (1901), Gustav Klint
Dois olhos amarelados me devoravam pelo outro lado da mesa. Franzi. Estremeci. Amoleci. Da penumbra do salão de jantar insone, uma mão pegajosa se aproxima de meu braço pálido, desnudo pelo avançar das horas e pela chegada da salada insossa; sinto calafrios nas pernas e suor na nunca, enquanto sua pele escamosa serpenteava por meus quadris esguios e meu tronco carnudo: uma voz me chama como no primeiro dia que encontrei a Deus:
Shhhhheus olhos, shhhhsão tão bonitoshh, lindinha. Voshhhcê é a Eshhh- tella?”
De princípio, estranho a lagartixa que fazia pose de jacaré, daquelas que nunca saíram do esgoto no fim da rua ou daquelas que vivem trancafiadas no zoológico da mãe delas, assistindo séries pornográficas ou jogando aquelas porcarias de I-Sports que transformam verdadeiros marmanjões, gorilas crescidos de mais de um metro e oitenta e três, em verdadeiros desmiolados dos câpi-nudes que só pensam em bilde, bãfe, combo, item e penta-kill. Mas como a música tocava — ou melhor, eu ia ficando mais e mais embriagada com a fartura de cachaça —, reconheço que aquele cara era o Kadu06, pseudônimo de Carlos Eduardo Siqueira Homem de Mello: estudante das novas tendências quânticas-digitais dos brôgui das digital-esferas, dono de Pipoca, Lilica e Lulu, seus “filhos inestimados” que recebiam todo carinho e atenção que não tivera dos pais, e fanático por Jonatan Peterson e Ben Shapiro, seus “ídolos incontentáveis para redenção da raça masculina e resgate da masculinidade perdida ” — e sim, amigos e amigas, eu estava bêbada, perdida e desesperada. Ô gódi.
Uma caipirinha socada no glúten — não me perguntem como — e no açúcar me chega aos dedos rechonchudos, e mais e mais, eu simpatizava com aquele fedelho do queixo fundo e de olhos brilhosos; e mais e mais ele ia me enrolando com aquele “papinho” de aplicativos de namoro, de desempregado do século vinte e um: “’miga dos animais ou vilã dos vegetais? Você é mesmo sagitariana? Feminismo é mesmo o inverso do machismo? O que é ser um ChernoBoy ou um boy lixo no seu conceito? Bela, recatada e do lar ou bela, depravada e do bar? Qual personagem do fren-diz(friends) você tirou na lista do Bãzz-fidi?” — Nunca esteve tão difícil trepar nesta cidade, ainda mais se você escolhe um lagartão desses pra lista do abate. Puta que me pariu.
O tédio m’arrebatava. E, de soslaio, no ritmo embalado daquele nhé-nhé-nhê de milenial chato-pra-caraio, encarro a janela escura que dá com a Ibirapuera, com as pessoas simples e sonolentas que são passadas pelos carros, ruas, estradas, portas e portões e já nem sabem de onde vêm e por onde vão; apenas reconhecem nas rugas que correm o rosto e no sorriso transeunte que fere o semblante o caminho que a vida lhes toma e lhes entrega na sua romaria incessante de fazer do latão, do cobre, e do alumínio a riqueza que os outros não veem. E aquele peixe-boi lagartixa cabeludo duas-peles me vem falando sobre o racha que tira com os amigos em Campos do Jordão....
Me volto pro papo de faria-limers e santa-ceciliers — mano, quem é que inventa essas porra de nomi??? — e fico remexendo o canudinho da cachaça quente, já aguada pelo balanço morno da conversa fiada e pela máxima imemorial do macho-dinossauro pica-d’ouro — se pelo menos a picareta d’ouro chegasse ao fundo da mina... —, enquanto o lagartinho ignora meus suspiros e olhares mais caridosos, de fulana puta em noite falida, como se quisessem dizer: “meu filho, vamo’ cortar com o papo e partir pra toca do jacaré, melar os dedo’ no pântano e trepar no Carandá?" Mas a crocodilagem só continuava....
Da cozinha, ouço o estremecer do chapeiro fechando a escotilha, seguido dos garçons preguiçosos e presunçosos recolhendo o queijo ralado e os esqueletos magros das finadas fatias de pão: e aquele filha duma puta que só mastigava as palavras, sem sair daquele papo graúdo de macho alfa-vem- me-dourar-a-pílula? Pois bem. Num átimo de pouca-vergonha ou muito tesão — ou muita embriaguez e muita tensão —, arrasto a cadeira pra perto do lagartinho e pulo pro pé d’ouvido do sujeito, já agarrando a cobra do cabra e sussurrando um encantamento pra serpente vexada: “é hoje que tu sai da toca, tatu, ou tá difícil vir pra brincar?”.
Na arrancada, o fusca travou enguiçou pifou partiu: morreu. Sei lá. Só sei que quando arrematei a conta da mesa com um cinquentão trocado em notas de dez, o lagartixa ainda ‘tava por lá, na cadeira. Desmaiado, esticado e estirado. Mais branco que massa forrada naquele restaurante italiano de serventes e assistentes prazenteiros e risonhos — sobretudo vendo o pinta lá, gelado, com o pinto pra fora. Fascinante. De volta ao lar; rímel borrado, batom desbotado, pés com dores desumanas; e mais uma lição de (mais uma) noite com zé-punheta: escolher os de sangue quente.
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