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Sistemas de irrigação

\\ CRÔNICAS

Abria mão de todos os meus bens materiais pela dádiva criativa do sistema de irrigação, pelo bem maior da arte, pela Poiésis.

Por Tomás Fiore Negreiros


"Alliance" (Imagem: MALIV)

Semana passada instalei um sistema de irrigação aqui em casa.

Sim, comprei os esguichos e as mangueiras tudo, e instalei, eu mesmo, o raio do sistema. A ideia surgiu depois de mais de 6 meses de pandemia: só fico em casa, frequento os mesmos ambientes, assisto os mesmos programas, me irrito com as mesmas gentes,... uma hora a inspiração acaba. Careço daquelas antigas e saudosas andanças de ônibus até o centro; aquelas que eu levava a inspiração a passeio e nos perdíamos em ideias trazidas pelos vendedores de fones, carteiras e amendoins, que povoavam o pico das 18h. Mesmo as bebedeiras que ocorriam nos bares, com encontros, desencontros, vergonhas e (quase sempre) uma história que garantia o desespero do dia seguinte, assim como um causo para o boteco que viria na próxima semana.


Enfim, instalei um sistema de irrigação aqui em casa.


Contrariando o meu pessimismo endêmico, a montagem do aparato não foi tão ardilosa; mesmo ligar as mangueiras ao seus devidos fins foi até que simples. O complicado mesmo foi pensar em como tirar melhor proveito do sistema.


Explico. Carecendo de inspirações e temáticas para se escrever sobre, recorri ao único lugar onde as ideias parecem realmente fluir nesse momento de monotonia viral: embaixo dos respingos do chuveiro. Lá sim, a mente é revitalizada e (re)hidratada, fluindo novos pensamentos, brotando inspirações artísticas.


O chuveiro é tiro e queda.


Não precisa ir muito longe para se imaginar que um Kafka, mesmo um Guimarães Rosa, até um Paulo Coelho, dispunham de um chuveiro (ou algo que o valha) para elaborarem suas obras. Cada um à sua maneira e dependente da qualidade da água que caia sobre seu ombros, é verdade. Mas o chuveiro, o fluxo de água, é um dos grandes arquétipos da inspiração banhistisca em nossa sociedade ocidental.


Pois bem, considerando minha teoria, usei e abusei da força das águas, variando temperatura, posições, intensidade de fluxo,... até que a fonte secou. - Não secou de verdade, isso é um metáfora, presta atenção! - Pingando água seca sem irrigar o meu húmus artístico.


Diante da desertidão da sulfite em branco, e a secura da ponta grafite, o sistema de irrigação me pareceu a opção mais lógica para lidar com a minha falha criativa.


Pois bem, instalei o sistema de irrigação aqui em casa.


Me questionando sobre o melhor horário para utilizar do sistema, não houve dúvida. A imagem das inspirações gregas, das grandes revelações cristãs, do momento de máxima realização do inconsciente freudiano e suas formações psíquicas: deveria receber a musa irrigadora pela noite, em parceria com Morfeus. Ali sim teríamos nosso derradeiro encontro.


O chão de taco, os livros no quarto, a infiltração na parede, o armário ainda na sétima parcela do pagamento,... nada disso me importava. Abria mão de todos os meus bens materiais pela dádiva criativa do sistema de irrigação, pelo bem maior da arte, pela Poiésis.


Assim, instalei o sistema de irrigação em casa.


Às exatas 02:00 da madrugada, fui surpreendido por um jato de metáforas e figuras de linguagem que me invadiam o ouvido e encharcaram o travesseiro. O canto das mais de mil musas - que estavam mais para cigarras metálicas - entornavam o quarto em investidas molhadas por todos os cantos e desencantos. Os versos literalmente escorriam dos livros nas prateleiras e se misturavam em uma massa disforme de tinta e folhas. Teto e parede se inflavam de temas e novas ideias pra romances, contos, crônicas e poesias; todas elas recitadas pelo vizinho de baixo que, enquanto, batia no seu teto (meu chão) recitava versos de qualidade ímpar. O quarto se inundava mais e mais enquanto o meu jardim criativo se afogava em tanta criatividade.


Finalmente, tive uma ideia: escreveria sobre os perigos de se instalar um sistema de irrigação em casa.

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