\\ CONTOS
Rapidamente, chegou, me enlaçou pedindo desculpas, “eu trabalhei demais, sem parar, em vários lugares.” – estava doente. Já sentia. Já sabia. O tempo fora de casa viria pra ficar. E foi.
Por Nathalia Suzi, colaboração Para Frentes Versos
Normalmente ela chegava tímida beijando levemente minha face enquanto andava pelas ruas cinzas da cidade. Fazia carinho em meus cabelos tão delicadamente como um sereno leve em meio à brisa. Às vezes era tão fria que me fazia sentir imersa em águas geladas do Polo Sul. Era barulhenta e sua fúria poderia arrancar o teto sobre mim, me deixava irritada em momentos que não poderia e ainda sim limpava minha alma quando fluía em meu corpo. Seu gosto e cheiro eram únicos e todas as circunstâncias me faziam amá-la cada vez mais e sempre com uma intensidade absurda.
Ela estava em várias ocasiões marcantes ao meu lado, interminavelmente ajudava àqueles próximos a mim sem pedir nada em troca. Nunca havia alguém tão generosa: se doava para que o outro crescesse. Ao seu lado minhas lágrimas eram de imensa felicidade somente por estar em sua companhia, “deixe comigo, querida, cuidarei disso”, me dizia constantemente. Quando ficava brava notava-se até do espaço, coitados dos astronautas. Fazia barulhos violentos que já vi virem ao meu alcance pedindo por ajuda! Pena que não viam seu lado amoroso. Isso sempre a magoava deixando-a cabisbaixa e chorando pelos cantos… Ah, minha querida, se eu pudesse fazer mais… Apenas me restava respirar fundo e ajudá-la a recomeçar. Obviamente que temos amigos fiéis que não a abandonavam! Ali, presente, amor de amigo. Amor. Amor... Em sua vasta imensidão passeava livre pelo mundo, mas um dia testaram sua ira resultando em catástrofes, jamais fora domável, perpetuamente dona de si. Um dia quiseram dizer que era invocada, pois provou-se proprietária de sua vontade, novamente. Entretanto escondia seus amigos fiéis do perigo visível e invisível de uma humanidade sem piedade.
Um dia feriram várias famílias de amigos e conhecidos e ela foi ajudá-los ficando intermináveis dias longe de casa. Voltou arremetendo-me aos seus braços caridosos, porém disse-me que arranjara um novo plano de vida, sendo esse a missão de ajudar mais famílias e mais, mais, mais... Até que demorou a voltar. Meses. Logo ficou anos com essa rotina. Já me acostumara: seis meses com ela, seis meses sem ela.
Todavia suas forças foram se esgotando e cada vez ficava sem vir para casa e uma vez, rapidamente, chegou, me enlaçou pedindo desculpas, “eu trabalhei demais, sem parar, em vários lugares.” – estava doente. Já sentia. Já sabia. O tempo fora de casa viria pra ficar. E foi.
Esse ano foi o mais difícil. Perdi muitos familiares, mais do que no ano passado, a luta nunca pode acabar, mas as pessoas pegam pesado com gente como eu. Acham que não fazemos a diferença, “é só mais uma”. Não somos apenas mais uma. Machuca. Dói. Arde como fogo. Mais um dia tentando sobreviver à maldade, olhei pra cima esperando surgir um sinal de que ela estaria comigo. Nada. O céu tinha uma cor diferente e o sol estava laranja, percebi uma movimentação a qual todos estavam correndo em diversas direções, não podia entender, o que estava acontecendo?
Outro dia, outra luta. Nesta manhã não via o céu azul como de costume, aquela cor estranha virou um cinza... Cinza-chumbo... E o sol... Bem... Não havia sol, existia calor, muito calor! Minha pele ardia e irradiava um fervor até minha cabeça. Pessoas viam até mim perguntar se podiam se aconchegar em meu lar e como dizer “não”? Também me questionavam quando ela voltaria, para isso sempre cantava “eu estou sem ela, já não sei onde procurar, não sei onde ela está” – estrofe de uma música do Legião Urbana. Sim, gosto de Legião. Dispenso curiosos.
Com os dias meus cabelos foram caindo na mesma velocidade em que minha pele craquelava com o ambiente seco ao meu redor. Infelizmente muitos de meus amigos não sobreviveram e eu não tive forças para enterrá-los decentemente. Me doía tanto que alguns dias não suportava a tristeza, a dor de alma dói mais que a dor física e ver meus amigos morrendo... Minha família...
Todos os dias eu olhava para o céu pedindo que ao menos a visse pela última vez antes de partir. Não conseguia comer há... Não sei exatamente... Me desculpe, a falta de ar acabou prejudicando meu sistema respiratório... Um dia me viram ali, com o pouco de pelo que me restava e deram-me comida, algo para viver. Pegaram e levaram meus amigos e familiares prometendo um enterro digno pra cada um. Para sempre serei grata. Foram tantos dias de sofrimento. Até que um dia acordei e algo estava diferente: não sentia tanto sufoco assim e minha pele estava melhor. Havia o cheiro, aquele cheiro. Ela estava ali. Ela passou por ali. Ela veio me ver! Mas não a vi. Só a notava, bastava, já que me sentia no leito de morte. A sentia todos os dias quando acordava, me sentia renovada em cada um deles. Identificava aquilo: era amor. Seu amor.
Com certeza era a última vez que olhava para cima e ela estava lá. Não tão forte como tipicamente, inexorável como uma rocha. Estava tão suave e plena, visualmente não aparentava, mas a sua alma ainda estava doente. O céu melhorou. O sol também. E ela ficou comigo mais uma vez, parecia mais tímida que o normal, mas estava lá.
Estou melhor. Meus cabelos voltaram a crescer, minha pele hidratou e estou me alimentando bem. Em processo de recuperação.
E perdoe-me se eu não fui clara, no meio da fumaça e do calor esqueci de mencionar quem era: seu nome é Tempestade, Chuva para os íntimos.
Com amor, Ipê do Pantanal.
Comments