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À flor da pele

\\ ENTREVERES

Em busca de respostas ao paradeiro destas anotações escritas a braço duro; poemas ruins: consequências do amor lascivo e visceral de um jovem

Por Matheus Lopes Quirino


Era um pequeno broto, totalmente sem importância, que nasceu em um vasinho bem-cuidado, ao lado do pé de tomates-cereja, cultivado à mercê da sorte, na varanda do predinho do casal Paula e André. Eles haviam chegado de mudança há pouco naquele quarteirão, em um processo um tanto libertador: ambos pediram as contas de seus serviços convencionais para encarar, com a cara e a coragem, a novidade daquele amor, que passou a florescer junto a uma pacata rotina de cidade pequena, no interior de São Paulo.


E durante dez meses, enquanto a graça da nova rotina e a novidade apimentavam aquele relacionamento, viveu-se naquele endereço uma série de temperos e destemperos – pois, além do amor & sexo, ambos tinham os pés na terra (e de terra). Tudo começou com um pé de manjericão, e depois passaram a cultivar uma “horta vertical”, no espaço exíguo da varanda, além das muitas samambaias dependuradas pela casa.


Feito comensal, aquele broto em poucas semanas passou de mero figurante a protagonista da relva entre quatro paredes: tornou-se uma linda flor roxa, rapidamente replantada em um vaso só dela. E o que antes disputava – e perdia – espaço para os tomates miúdos da omelete matinal, tornou-se centro da atenção dos dois. A flor crescia resplendorosa e, em meados de certas madrugadas, descarregava no ambiente um perfume singular, um tanto sensual.


Era uma flor delicada que abria uma vez ao dia, mas não durante os sete dias da semana. Quando se mostrava, dava o ar da graça pela noite, fechando-se antes do amanhecer completo. Nestes crepúsculos felizes, e perfumados pela rara flor, era comum André ou Paula regarem o canteiro com uma garrafa de vinho ou bebida mais leve; habilidade aprimorada pelo casal, já fatigado em porres e aulas de botânica, experimentais e práticas.


E como a flor, tudo ali era novo, recente, abrilhantado, crescia; forjava-se um futuro incerto em que a paixão tomava todas as rédeas de qualquer pretensão ou sofrimento futuro. Vivia-se o presente, aos poucos enraizado, como condecoração do destino, e não rareavam as horas em que as estruturas do predinho tremiam, conformes os humores trepidavam à guisa de ovos mau mexidos, ou dosagens acidentais de pimenta e sal. A inconstância mantinha a pira acesa, bem como esperava-se de bons jovens e suas líbidos.


Paula e André formavam um casal vegetariano, com todos os requintes de amadorismo, pois ele, tentado, sazonalmente cedia aos pecados da carne, enquanto, em viagem, não fazia desfeita em recusar um bife desses divinos, servidos com cebolas caramelizadas e o que mais houvesse por direito, no prato. E suas escapadas duraram pouco quando, na cidade, o homem foi surpreendido pela companheira, com a boca na botija enquanto devorava um pão com mortadela, em plena feira de quinta. Paula foi mais uma a gritar, descabelando-se em prol de sua filosofia. Tornou-se vegana radical.


Depois de dez meses, entre recaídas da carne e da não carne, o casal decidiu descosturar-se em mediante o estado arrefecido dos golpes de paixão e dos encontros cada vez mais fortuitos. Desentenderam-se de vez. Desfiando cada trapo juntado em nome daquele enlace expresso. Engajados em boas promoções de trabalho, André – um carnívoro convicto que passou a rezar na cartilha das abobrinhas por um período curto – juntou seus poucos pertences e voltou à cidade que amargamente constatou: “Jamais ter deixado”. Ele levou consigo sua flor roxa, fincada no vaso sentimental de sua avó, pintado em Portugal.


*


De volta à garçonnière da cidade grande, o rapaz rebelou-se contra as flores e tratou de doar a conhecidos cada lembrança daquela paixão lambenta, fruto caído de dez meses. Quadros, artesanatos, plantas, alguns escritos, um ou outro pertence banal que relembrava Paula – como canetas, mini blocos de notas repletos de poeminhas bestas. Estes últimos pertences ele jurou incinerar, não fosse a insistência de um amigo que classificou como impiedosa e inválida tal sandice emocional. Nosso homem acatou o pedido, guardou os poeminhas a sete faces.


E ainda hoje custa a este cronista menor caducar em pensamentos em busca de respostas ao paradeiro destas anotações escritas a braço duro; poemas ruins: consequências do amor lascivo e visceral de um jovem. Ele nega ter se desfeito dos versos – único modo de defesa possível para um escritor iniciante, imerso em estado de poesia ou amor. Neruda, Vinicius, Drummond, Rimbaud…, culpava-se pobre homem, uma ratazana de biblioteca, apreciador de fina prosa poética. Pequeno demais, em matéria de poesia, quase uma formiga. Para não dizer um “nada”.


Mudou-se de casa, de vida, passou a ganhar mais etc. Aos poucos as quinquilharias do afeto eram desovadas pelos cantos da existência, o que não impedia, eventualmente, que houvesse reencontro – ocasião não nostálgica, mas latente, pois trata-se do amor recém “desgrudado”. Nestas de ao fundo da gaveta de escrivaninha achar um versinho ou uma foto, mesmo decidido da separação, o jovem escritor se autopenitenciava, o coração latia ou ronronava à lua azul. Blue Moon… You saw me standing alone…


Tudo voltava. Músicas, relances, momentos engraçados e as brigas bobas, passagens de livros e cenas de filmes que lembravam Paula. Certa noite, como um autêntico “a single man”, André pensava na moça enquanto ia às lágrimas com o final do longa “Flores raras”, um clássico de seus tempos como namorido, completamente entorpecido pelo perfume daquela pessoa amada. Mas as flores, ao contrário da canção de Bethânia, não resistiram aos vendavais constantes.


Naquela noite, ao olhar para o canto da sala, já era sabido pelo moço que sua razão, embora inexorável – era Touro com ascendente em Gêmeos – tardava em apaziguar as contrações do amor. Um tanto confuso, observou o vasinho português em pedaços no chão, com a flor roxa, já desenvasada do terreno original, e mais viva do que nunca. Brilhando.


Naquela ocasião o jovem pensava em Paula, enquanto inalava o odor desconhecido da flor que bagunçava seus sentidos; ela não havia morrido, mesmo há dias minguando no chão do apartamento. E André pensou em Paula, que pensou em Otávio, que pensou em Amaralina. Amaralina pensou em Alberto, que pensou em Tarsila, que pensou em Pedro, que pensava em Lucca. Lucca pensava em Marcel, que pensava em Isabely, que pensava em Jean, que pensava em Giovanna, que pensava em Anna, que pensava em Mateus, que pensava em Amora, que pensava em Sophie, que pensava em Humberto, que pensava em Clarice, que pensava em Felipe…


A crônica é dedicada a Victor Heringer (1988-2018)

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