\\ CRÔNICAS
Olho seus olhos, no negrume da pupila. Ao fundo, cintila alguma esperança, entrevendo em sua alma a aurora da manhã fresca. Penso quando a quarentena vai acabar, revolto-me com a atitude dos mandatários
Por Affonso Duprat
pintura - Olga Nosach
Preparava o café da manhã de roupão quando o telefone tocou. Era minha filha, recém-operada, gritando ao telefone comigo. “PAI, ENTRA NO WHATSAPP”. Estou velho e surdo, perguntei se ela gostaria de panquecas com calda de morango ou tangerina. Mas não, ela me enviou por mensagem um vídeo montado por um grupo de esquerda, provavelmente um petista de guerrilha amaciado por um porre à direita. Falava umas sandices, mas com certeza era engraçado.
Lembro de umas coisas engraçadas do passado, como quando varava a noite no centro de São Paulo com meus colegas jornalistas, ou mesmo a fina-flor da esquerda. Gabava-me por ser indestrutível. Hoje, mal sei mexer nesse negócio de celular. É uma dificuldade danada, lembro-me como se fosse ontem dos primórdios do computador. Relutei a ele, fazendo uma campanha sentimental à maquina de escrever. Perdi, como sempre, como sempre nas minhas campanhas sentimentais.
Segue o jogo. E minha filha discute comigo no telefone fixo, agora sobre o sabor da panqueca. Reclama do marido, pergunto sobre a sua mãe. Tudo normal. Nesse exato momento, estou em casa escutando rádio, música clássica, rádio Cultura, coisa que os jovens não sabem que existe. Se soubessem, aqui estariam comigo. E, talvez por iniciativa, não custa fazer a campanha, talvez eles mandassem cartas ou Whatsapps à radio, pediriam para reformular a grade e dar vida a uma cultura que suplica mais alguns instantes de vida.
Termino as panquecas que minha filha buscará. E penso em Antonio Vivaldi, Tchaikovsky, Debussy, etc. É gostoso passar as tardes na companhia desses gênios, lendo bons livros, escrevendo, fazendo aquarelas ou polvilhando açúcar de confeiteiro em tortas doces. É uma pena ter que lamentar o esquecimento de uma cultura tão sadia que dá asas à imaginação. A música clássica, assim como o jazz, está saindo de moda desde que eu era adolescente, há uns mil e quinhentos anos atrás.
Escuto a buzina da Land Rover da Melissa e saio de máscara com um pacotinho na mão. Estou um pouco gripado, entrego tudo de luvas. São as panquecas. Não podemos nos tocar. Dentro do meu peito toca uma sinfonia triste, olho seus olhos, no negrume da pupila, ao fundo, cintila alguma esperança, entrevendo em sua alma a aurora da manhã fresca. Penso quando a quarentena vai acabar, revolto-me com a atitude dos mandatários. Lamento. Entrego a caixinha e Clair de Lune invade minhas mãos que começam a tremer. À noite, baterei caçarolas! Vantagens da surdez.
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