\\ ENTREVERES
Era pavorosa a hipótese de acordar um dia e não poder usar um par de meias rosas/azuis e vice-versa
Por Matheus Lopes Quirino
Por um instante a paz do jantar foi perturbada por um detalhezinho. Um pedaço de pano, desses de limpar boca. Bordado, mas nem por isso pomposo: um guardanapo azul com iniciais. Sendo sua cor o motivo para o destempero da “jantante”, furiosa – ainda que movida pelo desassossego juvenil. Bateu os talheres. Clecks no prato. A mãe olhou um tanto ressabiada por entre o castiçal com frutas. E o pai foi logo dizendo: mas o que é isso?
Cruzaram-se os braços. Beicinho. Olhinhos vidrados na aparelhagem do jantar. Todos os guardanapos de pano eram brancos, menos o seu que era azul. E ela não gostou nem um pouco. Embora carregassem as iniciais de seu nome e sobrenomes e um desenhinho de pata, tão amador quanto a costureira, porém bordadas com demasiado zelo, por ocasião pela própria mãe. Os humores da presenteada com o adorno não cediam à ideia de que aquilo não lhe dizia respeito.
“Come, tesouro, come”. Disse-lhe o pai. Ela continuou na negativa. E ninguém entendia o motivo da pirraça. Era um bom, não, um ótimo prato. Os outros que compunham a mesa seguiam cortando, picando e desfiando os pedaços de frango cozidos com tomilho. O ambiente estava perfumado, salpicando vontade às papilas gustativas. E as intenções da criança eram um ato de rebeldia ao jantar. Ela era a única mulher, com exceção da mãe, é claro, ali.
O pai perguntou porque ela não começava a comer. Teria ela virado uma defensora das galinhas? Pelo contrário: o frango continuava sendo seu prato favorito. O problema era o acompanhamento. Mesmo esse não sendo comestível, apenas repousando ali do seu lado direito e do meu lado esquerdo. Era aquele guardanapo azul… que era de menino.
E a menina insistiu em não meter o garfo no cozido enquanto seu guardanapo não fosse trocado por algo mais feminino. O pai ficou curioso, dizendo-lhe que o frango estava apetitoso. Não adiantou. Mas o pai também esqueceu de negar a gênese daquela treta cromática: o azul ali não significava nada. Era só para limpar a boca.
E a insistência persistiu quando o irmão mais velho tentou explicar que “cor de menino” e “cor de menina” não existem. As cores são de todos. Este subiu ao quarto e trouxe uma série de objetos rosas que eram seus e do pai, justamente para tentar sanar as angústias daquela criança temperamental e faminta.
Espaventada, a menina ficou em silêncio; todavia aquele parecia ser um começo de sucesso, por parte do irmão. Ele sempre havia perdido todas.
Passados o jantar e alguns dias, a história da “cor de menino” e “cor de menina” prolongou-se. As provocações se refinaram. Até sobre outras cores, que, essas sim (mas como todas) não significavam nada. O roxo, por exemplo, seria uma cor mais masculina ou feminina? E os daltônicos como eles ficariam a par desta tabela de virilidade cromática e vice-versa? E outra pergunta que surgiu: existem mais daltônicos homens ou mulheres? Sem resposta. Mas a menina concluiu, pois para ela tanto como para o irmão, aquilo não tinha lá uma grande importância. Eles não conheciam nenhum daltônico.
O debate avermelhou-se, intensificando o rubor das discussões. Todas as meninas pensavam igual. “Meninos versus meninas”. Era uma guerra dos sexos inocente. Uma tradição há muito esquecida que, assim sendo, voltou a florescer em meio aquela turma do jardim de infância. Todas as meninas usavam rosa. Todos os meninos usavam azul. E não adiantava explicar ou mostrar provas: era assim.
Na mesma semana, o irmão, acompanhado pela pequena, foi comprar meias em uma casa toda garbosa. E tão antiquada quanto a palavra. Ali, dependuradas, na seção masculina, meias azuis marinho, pretas, cinzas, marrons e beges. O irmão perguntou à vendedora se não havia nada mais alegre. A vendedora apresentou meias de super-heróis. Ela realmente estava de brincadeira.
De saco cheio, mas nem por isso desprovido de educação, três pares de meias listradas, com várias cores, chamou a atenção do irmão, no meio da “Seção feminina”. Eram bonitas, cano alto… porém a vendedora veio com a velha história do tipo:“É coisa de menina…”. Já jogando um “Mas não importa…”. Eis que surge uma palavra até então nova para a menina, aborrecida pela demora ali: “Unissex”. Levantou-se de curiosidade. Deve ter pensado: mas que diabos era aquilo? Perguntou ao irmão: é unissex? Ele disse: não, são meias.
Unissex, depois foi explicado. Então, teoricamente, os problemas de gênero estavam resolvidos. Assim como as vicissitudes dos guardanapos e das meias. Tudo poderia ser unissex. Não importava cor ou forma. Era até mais legal. Contudo, pareceu-me que a nova palavra causou uma certa desconfiança. O estigma “Guerra dos sexos” iria por água abaixo, assim desmistificando todo um sistema regrado por certos demiurgos do moralismo.
Mesmo assim ainda era pavorosa a hipótese de acordar um dia e não poder usar um par de meias rosas/azuis e vice-versa.
Borboleteada naquele mundaréu de meias, sem dúvida, do outro lado do mostruário, uma série de estampas e cores surgiram. Assim, a vendedora, tendo percebido a subversão tricotada pelos dois ali mesmo, pôs-se risonha e contornou o discurso passado falando que aquela seção era de crianças. O irmão acrescentou, fitando um par com pequenos veleiros bordados: “Tenho uma igual, ganhei de uma amiga há uns anos, de aniversário”. Em loja de meias, então, assim como no carnaval a regra era: calce o que quiser (vá quem quer).
A menina então escolheu uma meia de chimpanzés, sem se preocupar se era “Coisa de menino” — poderia até ser. Mas parei por um instante para pensar o quão importante era, logo cedo, declarar o voto “Unissex” não só nesses acessórios pessoalíssimos, mas em situações maiores (e bem maiores). Pensando bem, é outra boa discussão para o segundo turno. Estávamos de chinelos.
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