\\ ENTREVERES
Por Matheus Lopes Quirino
Pintura - Diego Velasquez. El triunfo de Baco o Los Borrachos
Naquele dia soube que cada música tem seu tempo de dança. Nada impediu-me de calçar novamente os sapatos e bailar pela rua como um paralelepípedo jogado num cerco. Um peão de madeira desengonçado, regido pela fina sinfonia de álcool de vinte e cinco reais transando com um bandolim. Levantei-me e amarrei a sapatilha. Os sinos da porta fizeram ‘clim’. Olhava pela vidraça suja o interior da rua, com todos os homens pisando duro no chão. E ele ali, pisado sem dó nem piedade.
De todos os caminhos que me ritmavam, descer na sola, um passo de dança, assim, toda arrebitada. Assim, toda faceira como uma corista. Bem, era isso, mademoiselle. Pensava eu, rindo pra dentro. Com os lábios formigando. Pensando no lobo mau. Lolita! Lolita! Gritava dentro de mim uma velha voz. Um vozeirão de mulher fumante com gogó. Com laringe estalada, pintada de cigarros e outras coisas portenhas.
Ri estrepitosamente. Rárárá. E começava a andar com os lábios formigando e a anca mexendo como uma tanajura em desjejum pelo mais doce grão de açúcar. Subia em mim uma coceira sem sentido nas pernas, nas nádegas, no corpo, em uma frase longa, loooooonnnnnnnggggggggaaaaaaaaa. Prendi a respiração e desci mais um degrau do sobradinho. Meus olhos estavam fechados.
Colados por remela. Colados com super bonder. Colados por seiva de árvore velha. Pelo pigarro da mulher de voz velha. Pelo vozeirão. Me contorcia, asmática. Pronta para gritar que “queria ser vulgar”. Estava com medo na descida. Não quero pensar no amanhã. Ele dói. É uma música que não sei cantar, nem dançar, nem ritmar com os pés, nem sair por aí dizendo que sei. Porque não disse que sei. Não sei e não quero fingir que sim. Não quero fingir. Eu quero dançar vertiginosamente até o salto de agulha quebrar ou perfurar as minhas cócoras.
A porta está aberta na entrada da casa pequena e mal construída. De lá, sai uma música estranha. Rock progressivo? Não sei. Arrigo, Dicró, Samba de Miolo Mole, Bolero de Ravel, Rachmaninoff, bítús. Sei lá. A vida é uma grande ilusão que se toma fria, em vias venais. Passa um ônibus e arranca todas as bandeirolas que cintilam em cima dos fios de determinados postes naquela rua. Eu desço e me sinto fantástica com tanta tristeza pelas bandeirolas no chão. Estou louca e sou mística. Jogo com as pedras e cristais que acho debaixo do travesseiro, atrás do guarda-roupas. Desmaio e meus lábios se espalham pela rua, como as bandeirolas.
Minha mãe me ensinou duas coisas. Dançar e dançar sem medo. Dançar, a primeira delas, não é no sentido de mexer o corpo. É no sentido de se dar mal. E já se dando, pois bem, envolta nesse emaranhado de desgraças, como se fosse uma mosca ou pulga prestes a ser comida pela caranguejeira, só me resta mexer os quadris. Ser uma hóstia pronta para ser sorvida pelo Santo Padre. Falando em latim. Tim tim, por tim tim. Baila Lolita! Rim tintim!
Tudo muda quando desço a rua de sapatilhas e encontro uma cabine de fotos. Resolvo entrar dentro dela: há três tentativas. Saio de olhos fechados na primeira, de cara amarrada na segunda e, prestes a estourar o flash na terceira, quando ele está quase lá, quase, quase, eu me preocupo tanto. Deus! E tento dar o sorriso mais largo do mundo, o mais aberto, tento mostrar meus dentes, mostrar todos os dentes, todos os quatrocentos e oitenta e um dentes. Todos do tamanho de uma placa pré-histórica. Do tamanha de uma nau.
A terceira foto vem e é natural. Não tenho dúvidas que saí bem. E quero repetir. Passar o dia ali como uma adolescente drogada por sua própria menininha ao mostrar os quinhentos dentes. Os mil dentes. E rir por uma besteira. Ou rir porque os meninos são feios. Ou, sabe, sentir uma coisa estranha. É um lábio coçando e a língua tremendo.
Saio da cabine e o mundo está em preto e branco.
De repente, não existe uma voz que me toque mais do que a velha voz. E parece que só há ela no mundo. Tudo perdeu absolutamente o caldo, a seiva, a vida. A vida e os sapatos morreram. Todas as coisas estão embaçadas, embaralhadas, anasaladas, emaranhadas, exorcizadas, feias, paradas, escuras, sujas, declinadas, pérfidas, longínquas, incuradas, intransitivas. Eu só penso no cão basset que não late mais. E sinto uma pena que inunda todo o meu coração, todo o mundo em preto e branco. Como lodo que suja água em pia limpa.
As coisas ficaram mais difíceis desde que saí da cabine. Não suporto mais dançar nem sorrir. E se não existem sons, não existem cheiros: a remela está cada dia mais espessa. Fico horas no tanque esfregando com sabão de coco, ouvindo a voz velha dentro de mim. E vendo o cão basset me olhando enquanto suas orelhas transformam o chão em um enorme tapete aveludado. Os homens cruéis pisam ali. Todos os dias e sem sapatilhas.
Calço sapatos de madeira e decido andar a rua de trás para frente. Como se uma virtude do contrário brotasse em minha cabeça e me mandasse ir de faz de conta, de costas, de volta ao passado. Pisando e desenrolando toda a orelha do cão basset. Os hotéis estão fechados naquela rua. Todos são rudes e mudos e acarpetados.
Há apenas a máquina fotográfica. A cabine. A cabine e tudo que há fora dela. Dentro dela. O basset. Os homens andando, as mulheres andando, os homens dançando ballet, os filmes estragados. O lixo. Os colares de madre pérola. Minha santa de barro se desfazendo. O dançarino Rudolf Nureyev. E todos os homens andando para trás, no mundo preto e branco, todos dançando ballet. Amarrando os sapatos, mas ao contrário. Andando de trás pra frente.
Digo, digo, digo. Tiro três fotos novamente. Na última saio sorrindo. A do meio, não sou eu. A primeira falha. Repito a dose. Mas é tarde demais. Está um borrão bem na minha frente. Frustro-me e chuto a máquina. As coisas estão complicadas. Pois saio de lá, só há uma clarineta. Ao invés do bandolim. Uma garrafa meio cheia, meio vazia. Duas taças de porcelana. Um quadro recém pintado de Velásquez. Figos frescos e um homem. A amarrar a sapatilha. E a sair pisando duro como um cisne negro num lago de asfalto.
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