\\ ENTRELINHAS
O sebo nos dá uma chance de reescrever os atos - aquele livro deixado nas prateleiras da livraria em um fim do mês especialmente apertado ou o volume abandonado após uma leitura amarga – novas oportunidades são instauradas
Por Giovana Proença
Eles que se abrigam em pequenas portas sem vitrines e por casarões tombados, da Sé até a Consolação, nos arredores de estações de metrô. Que por alguns passos hospedam os passantes da Estação Cultural que cruzam o eixo Paulista. A rotina mais acentuada quando se derramam pelas calçadas, ao rés do chão. A dose de saudade de muitos literatos em quarentena - eles mesmos - os sebos.
Por demanda ou por descuido de transeunte desocupado, em anseio por perder-se por alguns instantes, você decide entrar. Algo sussurra para que adentre aquele ambiente de nome pouco convidativo. Cruza a porteira, não há mais volta. O primeiro inspirar nem sempre é agradável, os que sofrem da rinite podem sentir o desconforto no nariz, seguido por alguns espirros teimosos. Mas, no fundo, as parcelas do aroma daquela história está lá, as prosas que nos constroem e destroem nas páginas muitas vezes amareladas.
Por sorte, temos até trilha sonora, afinal, muitos sebos dividem espaço com discos. O bom e velho vinil, motor das vitrolas vintage, roda suas toadas. Nossa MPB e os clássicos americanos de décadas de outrora afagam os ouvidos enquanto prosseguimos a exploração. O trajeto é mágico, uma verdadeira viagem no tempo. Ouso traduzir livremente Robert Frost, célebre poeta americano do século XX “Duas estradas divergem em um carvalho seco/ e lamento, mas não pude viajar por ambas”. O sebo nos dá uma chance de reescrever os atos - aquele livro deixado nas prateleiras da livraria em um fim de mês especialmente apertado ou o volume abandonado após uma leitura amarga – novas oportunidades são instauradas.
Não há lugar mais democrático do que o sebo. Nietzsche, seu super-homem e a voz que afirma ‘Deus está morto’ podem dividir ironicamente a prateleira com o Evangelho, e até com um exemplar de comic book da Marvel. Nicholas Sparks discute com o romantismo de Goethe. A poesia metafísica de Hilda Hilst acaba lado a lado com um volume com as palavras poesia e alma levianamente grafadas.
Temos a chance de caminhar pela literatura brasileira, e como é engraçado - e um pouco revoltante, assumo – encontrar nomes como Eça de Queirós, Fernando Pessoa e José Saramago erroneamente entre nossos escritores, implorando para cruzar o oceano em Grande Navegação para a Literatura Estrangeira. O olha atento no percurso pelo nosso time verde e amarelo nos permite criar grandes frases: Iracema cantou a Lira dos vinte anos nas Noites na Taverna. Olhai os lírios do campo no Cortiço. A hora da estrela Perto do coração selvagem. Memórias póstumas de Brás Cubas na Pauliceia Desvairada.
Nesse percurso, enfrentamos uma vilã. Uma não, centenas. Se Kafka e Clarice têm suas baratas, nós temos elas. As temidas traças, roedoras do papel. Elas que corroem ferozmente todo um universo. Arredias, se escondem por páginas e páginas. Assistem o adultério de Madame Bovary, a morte de Ivan Ilitch e o nascimento de Benjamin Button e, em uma noite, convertem tudo ao nada.
Um assunto delicado, o inventário de livros com dedicatórias que acabam nos sebos por uma nota de vinte, ‘à vista por 10’. Edições que passam de pai para filho, tradição interrompida em uma prateleira catalogada de livros raros. Os volumes mais românticos da poesia, com dedicatórias de juras de amor eterno, a promessa rompida do ‘Soneto da fidelidade’ que encontra seu fim na seção poética. Histórias anônimas dentro de grandes histórias.
Para citar Vinícius de Moraes, compositor de canções que embalam a Bossa nova, uma vez encontrei um exemplar de Para viver um grande amor por vinte reais em um sebo na Augusta. Cometi um doce engano, jurei que uma inscrição gráfica se tratava de um autógrafo do próprio Vinícius. Sou colecionadora nata e admito, minhas mãos tremeram em excitação com a possibilidade. Vibrei com meu fortúnio por alguns segundos até o proprietário do sebo me alertar do meu equívoco com toda sensibilidade de quem estava destruindo um sonho. Por um instante, a voz de Maysa tocou na minha cabeça ‘Meu mundo caiu’. Deixei o livro por lá, confesso que perdeu a graça. Recebi ainda um último ensinamento “É, moça, sorte grande assim não se tira, ainda mais Para viver um grande amor”.
O trajeto encontra seu destino. Às vezes saímos de mãos vazias, levando na cabeça o tempo como visitante do sublime, entre linhas e letras que integram a literatura universal, que Goethe chamou Weltliteratur, em língua germânica. Para os que não se limitam a carregar apenas um vislumbre dessa viagem, uma ida no sebo é como viver um grande amor. Muitas capas belas chamam atenção, mas sempre tem o escolhido, o volume que se esconde nas prateleiras, as páginas tímidas levemente empoeiradas, que afagamos suave, o olhar que diz “Eu sei que vou te amar”. Sabemos, assim nasce um romance de cabeceira. A sorte grande é encontrá-lo antes das traças.
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