\\ TERCEIRO SINAL
“Com certeza é algum idiota”, suspirou, e apagou a luz
Por Bruno Pernambuco
“O que eu mais gosto em você é da sua sinceridade absoluta”, foi o que ela disse.
Ele girava sobre a mesa o copo cheio prestando atenção nas marcas que o gelo deixava sobre o mogno. Naqueles pequenos círculos, concêntricos, sempre novos, um depois do outro, ele mastigava aquela mesma observação. Apoiava, ao lado, o caderno aberto, as páginas em branco, e entre os dedos brincava com a caneta. Surpreendia-lhe inteiramente a descoberta, e de cada mínima intuição de escrever, de sentir o peso da caneta, e enxergar o caminho no papel deixado pela tinta, nada saía que não as bases para um tratado filosófico:
DO AMOR:
1. Demonstração de que apaixona-se sempre por alguma coisa, e não por alguém; visto como é possível se apaixonar por uma certa graça ou pela delicadeza do gesto de alguém que se odeia inteiramente.
Era um esforço difícil continuar, mesmo que nisso já estivessem dados, ele acreditava, os pressupostos básicos. Mas não haveria de ser tão complicado assim delimitar essa substância autônoma; mesmo um estudo científico extremamente simples seria capaz dizer onde que uma coisa termina e outra começa. Certamente, se ele tivesse coração seria capaz de raciocinar sobre essas coisas todas, e talvez com muita facilidade, ainda- isso o tranquilizava. Talvez de fato não lhe coubesse mais que uma anotação, um registro desse esquema básico da realidade que alguém de espírito e capacidades maiores pudesse depois expandir. De qualquer forma ainda lhe intrigava entender quem é esse desejo e em que parte do espírito que ele se localiza.
Particularmente interessante era a descoberta porque levava a muitas outras questões muito interessantes- sobretudo, ele pensava em última instância levava à única questão que realmente importava: o livre-arbítrio, e a finalidade do espírito. Ele estava profundamente certo que a análise cuidadosa daquela sua observação levaria a uma mais precisa quanto possível definição a respeito da intencionalidade. - “A raiz de todo problema”, ele dizia, a si mesmo, e é também o que dizia, ou diria, a seus adversários, “consiste em entender se esse amor profundo e súbito é algo que age à revelia do espírito, contrariando-lhe, ou se é o espírito mesmo que decide se fixar nesses lugares.” “Fazer essa análise procedendo da maneira correta resultará então que saibamos os limites precisos daquilo que contém o espírito”, continuava, “e então com esse conhecimento será possível chegar à questão de quais são aqueles seus pressupostos inescapáveis…”
Despertou. Olhou para o caderno em branco, ao seu lado, estranhamente lembrando-se de alguma frase que tinha ficado perdida em um fim de fôlego. Olhou o relógio e percebeu não terem passados mais que dez minutos desde a última vez que o conferiu - o que queria dizer, afinal, que ainda havia tempo para o compromisso da noite. Levantou-se, fechou o caderno e guardou-o no bolso do casaco. Foi em direção ao quarto, onde já estava o fraque cuidadosamente arrumado. Na cozinha, a luz estava acesa e borbulhava a panela onde se cozinhava molho. Arrumou novamente as cadeiras, buscou no armário de louças sete pratos, copos e pares de garfo e faca e deixou-os arrumados na mesa para o jantar. Pegou a vela que deixara em cima da mesa e com ela caminhou em direção ao quarto. Prestes a sair da sala, perguntava-se com quem é, afinal, que conversava.
- “Com certeza é algum idiota”, suspirou, e apagou a luz.
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