\\ CONTOS
Era isso! Sentia-me na iminência de ver aquela pureza penetrar minhas vias de chacra e fluxo de ideias. “Só mais um passo,” pensava “só mais um passo...”
Por João Pedro Tognonato, colaboração para Frente & Versos
Certa vez conheci um homem puro. Encontrávamos-nos para um café toda quinta a feira por volta das 21h num restaurante na região do Morumbi. Ele insistia em apontar os caminhos da pureza, e eu, na minha reles mediocridade, me esforçava para entendê-lo, ao menos um pouco. O principal, segundo o sujeito, era estar em dia com a sublimação. Por exemplo: “se ficar preso no trânsito,” dizia, “guarde a raiva, produza um poema. No lugar de falar mal dos outros, por que não pinta um quadro?” Eu logo respondia, “Mas eu não sei pintar nada. Sou um completo sem-talento.” Ao que prontamente retrucava: “Apenas deixe sair aquilo que está dentro de você.”
Após aprender essa lição, veio a seguinte: um retiro espiritual. Se enfurnar nalgum canto de belas paisagens; e higienizar a mente dos pensamentos impuros. “Não se esforce” foi o que falou, “Deixai que a beleza natural brote entre suas sinapses as reflexões imaculadas.” Me despedi e parti para a missão. Dois anos numa cidade do interior, observando os trabalhadores agrícolas e as vacas pastando - nunca lhes dirigi palavra alguma, nem afaguei qualquer parte dos bovinos. Lhes garanto, foi assim: conforme passava, sentia estar perto da compreensão total.
Em março, quando acabaram os recursos, e tive que voltar à vila genérica de São Paulo, me via bem mais calmo e emancipado. Fui ter com o mestre novamente, que apenas bateu o olho em mim para abrir o sorriso. “Agora vem a última fase. Terás que conquistar... um rebanho!”
Era isso! Sentia-me na iminência de ver aquela pureza penetrar minhas vias de chacra e fluxo de ideias. “Só mais um passo,” pensava “só mais um passo...” Corri rumo à gráfica e imprimi dois mil panfletos; cadastrei uma conta nas redes sociais onde postava ao menos um textão por dia. Entendi que para a coisa vingar, precisaria de um disparador; porém, com o acumulado, deu só para aparecer na quarta página do Google - “já era alguma coisa,” dizia, animado. Tudo pronto, dei partida no projeto, e em menos de um mês, arrecadei mil seguidores.
De volta ao restaurante, pontualmente às nove, na seguinte quinta feira após lograr êxito, pedi em dobro a comida e a bebida mais cara do menu: espumante Chandon (R$ 349 - pela garrafa) e Lagosta com Brie (R$ 879) para mim e meu mentor. Disse ao garçom, que abrisse o vasilhame quando chegasse pela porta e introduzisse a cota de queijo dentro do animal passados 30 minutos de conversa. Era uma noite de graças, mas ele nunca deu as caras.
Novamente ao tédio e à monotonia e aos jornais, de modo que a pureza se esvaiu de mim como se esvai o fel pelos dedos de Calíope. Não brilhava mais no meu olhar, ou pulsava em meu espírito, a chama leonina, capaz de transformar o deserto num parque de diversões. Tudo causado pelo abandono daquele que prometera iluminação. Era demais; liguei a tv; transmitia no canal sete estranho caso prometendo ser curioso: um homem, dois presuntos, 20 litros de sangue, e uma relação incestuosa. Faltava só o “boneco” – uma foto – do cadáver, que revelasse sua identidade.
Não foi surpresa a minha – e aposto que não será também do leitor, pois os caminhos só poderiam trilhar para esse ponto – premeditar o desfecho deste enredo. Quem mais não estaria para ser projetado naquela imunda tela, senão o bendito do curandeiro, enfiado num saco prata, refletindo com nitidez toda a cena: a casa, e no fundo, o laboratório fotográfico, onde encontraram dentro de um guarda roupa, cassetes de pornô infantil e alguns fuzis.
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