\\ ENTREVERES
Saudade atende rapidamente ao seu nome, como se já soubesse e viesse endereçado a mim assim, desse jeito.
Por Matheus Lopes Quirino
Eram dias lentos e silenciosos na chácara. Acordava de manhã a passos mortos, provando a mornidade da vida naquele café com leite de cabra, mexendo o líquido na xícara com a esperança de causar um rodamoinho, uma tempestade titânica, algo digno de uma épica grega ou ao menos uma fábula. Pensava em Herman Melville, na baleia, em embarcações, olhava as paredes de madeira, os cascos da chácara. Era um sonho de criança que bagunçava minha mente, como uma onda bagunça a praia nas primeiras horas da manhã.
Era a casa dos meus pais, mortos e enterrados na areia de um arraial. Pensava, diferente, ainda balançado pelas intempéries indeléveis deixadas ali, nos móveis, em mim. E velava quieto cada lembrança, sem prestar condolências nem nada. Era uma morte figurada, mesmo que as feridas doessem e teimassem em fechar, estava ali depois de muito tempo, e o passado só reservara pequenos negativos bonitos, revelados e guardados em alguma caixa no porão empoeirado dos anos 1990.
Nove horas da manhã, ainda sentado à mesa lendo um jornal com dois dias de vencimento. As chuvas fizeram com que o carteiro não viesse e, sem internet, tornava-me um isolado naquele casarão de pedra, mexendo um café terrivelmente forte e já meio frio, na esperança de boas notícias, já requentando aquelas que lia com atraso. Como poderia uma epidemia encastelar as pessoas? O que eu estou fazendo aqui?
Escuto um barulho na cozinha e levando como um cão de guarda. Não há absolutamente nenhuma vivalma aqui nesse pedaço, as cidades estão vazias como a chácara. Olho e, de repente, vejo um pequeno vulto agitado, debatendo-se pela cozinha. É um pássaro pequeno. Logo me afeiçoo a ele e, disso que bate asas, frenético, preso dentro de casa, chamo-o de Saudade.
Saudade está a bater como um inseto aturdido por um jato de veneno, completamente estonteado, e outros erres e falas pastosas típicas de veneno involuntário. Sei que o vizinho mata passarinhos e me parece que Saudade tem uma asa quebrada. Só me resta recolhe-lo e esperar para que, abrindo a janela, voe e chegue ao seu destino, ao seu ninho, quem sabe os ovinhos, depois de chocos, sobreviverão às tempestades. Ou quem sabe é o pai que cuido com minhas mãos nodosas. Saudade atende rapidamente ao seu nome, como se já soubesse e viesse endereçado a mim assim, desse jeito.
Teria medo de passarinho em outras circunstâncias, mas um medo não de terror, talvez, desde criança, compreendesse a fragilidade que é lidar com um serzinho tão pequeno, de tenra beleza, cuja fragilidade é o elo entre seu esplendor e a morte. O ponteiro acelera e já esqueço as notícias que não chegam da rua. Saudade toma conta de mim, e a ela devoto os muitos minutos que passo na chácara, até que o voo inesperado coroe sua pequena independência.
As manhãs passam e volvo ao trabalho, sempre com o passarinho na cabeça, lembrando o encontro inesperado e desengonçado na minha cozinha. Dois instantes e alguns meses: o zelo transformou-se em carinho.
Em um outro lugar, longe dessa chácara desconectada com o mundo, alguém chama Saudade, com o bico a cantar e entoar a voz, as penas a bater. Saudade, quero lhe abraçar com as asas de todos os pássaros. E por um vão momento, caio na penumbra, e subverto à infância, dou um riso tímido. Com o passarinho na mão, sei que chama Saudade e nada posso fazer se não esperar o tempo abrir as cortinas depois da manhã.
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