\\ ENTRELINHAS
O sentimental Holden muitas vezes me apanhou do abismo de meu próprio sentimentalismo.
Por Giovana Proença
Ode à transgressão ,acalento aos desajustados, defesa ao direito de encontrar-se perdido; muitos são os definidores de O apanhador no campo de centeio, maior obra do escritor norte- americano J. D Salinger. Ultrapassando a esfera literária - na qual configura entre as principais obras do século XX – o livro ocupa lugar de destaque na cultura pop e é carregado de misticismo, era aclamado por Mark Chapman, assassino do célebre John Lennon.
A maioria dos leitores que escutam o tom intimista do relato do protagonista Holden Caulfield em seus três dias de perambulações por Nova York após ser expulso do internato, não resiste a uma segunda visita ao livro. Assim foi comigo. Meu primeiro contato com O apanhador no campo de centeio foi travado a partir de um exemplar surrado, de uma tiragem que antecedia em décadas meu nascimento, e surrupiado de alguma biblioteca, cortesia de um amigo. Rotulei Holden como um sentimental. Não sabia, naquele tempo, que eu também o era.
Quando tempos depois vi o livro esquecido na estante, era minha hora e vez de ouvir a mesma pergunta que Holden ouve de sua irmã Phoebe: o que ele queria ser. Se ao menos Holden e eu soubéssemos que nunca deixaríamos de ouvir esse questionamento e que tampouco teríamos tão fácil a resposta, talvez eu pudesse tê-lo perdoado melhor de meu julgamento como odiador nato de tudo e todos. Quantas vezes tudo parece tão amargo e nos sentimos como Holden, injustiçados em um mundo em que a palavra justiça não existe em nossos dicionários. O jovem Caulfield achou sua vingança particular: o maldizer empensamento que acalenta os desajustados.
Dizem que a terceira vez é a da sorte, e assim foi meu reencontro com os estranhos e furtivos encontros de Holden Caulfield, que se deram por um The catcher in the rye versão pocket, no ano passado. Familiarizada com o termo Romance de Formação, a forma como as experiências da personagem o moldam, o tornam também expoente da rebeldia que surgiria com os movimentos decisivos das décadas seguintes, definindo mais do que a geração pós guerra. Os conflitos de Holden Caulfield ressoam em nossos jovens, que em constante movimento e instantaneidade, tem que lidar com decisões a quais são cedo demais submetidos, enquanto observam a efemeridade e o desabar cíclico da vida como conhecem – tudo enquanto choram suas dores no Twitter, é claro.
O devaneio desse jovem novaiorquino em ser o apanhador, ou o agarrador de corações (l’attrape couer) conforme poética tradução francesa, que impede que as crianças atirem-se no abismo que as espera no campo, é resultado do desejo de amenizar o doloroso contato com o mundo para os que ainda o experimentarão. Entretanto, nem tudo está perdido. Como os dias cinzentos dos quais sentimos falta ao olhar para trás, Holden revela no fim do livro a nostalgia que o acomete ao lembras de seus aventureiros encontros naquele fatídico final de semana. Para além, adverte:
“A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo.”
O sentimental Holden muitas vezes me apanhou do abismo de meu próprio sentimentalismo. Ele está comigo pelas andanças no centro de São Paulo, nos táxis que junto as moedas para pagar – ainda que para mim eles são brancos e não amarelos, e nos encontros desarranjados dos quais resta uma pequena dose de melancolia. Poderia entrar em um bar, e lá estaria ele, o whisky nas mãos e a postura descontraída, erguendo o copo em brinde: tudo bem perder-se de vez em quando.
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