\\ TERCEIRO SINAL
Gênero, Pan (2020) é uma obra a meio caminho da linguagem, com suas estações, suas fotografias que se movimentam.
Por Bruno Pernambuco
A psicologia da ilha é um enigma lento, demorado. Seu tempo passa em circularmente, em espirais de realidade que vão se fechando em direção à névoa. Sua materialidade é simultaneamente crua, úmida e árida, reminiscente da objetividade pura do trabalho. Suas lendas perseguem o homem, rondando a psiquê com uma vigília atenta. Seus horizontes são amplos, ilimitados, e seus caminhos fechados por hordas de mata são labirínticos, impenetráveis.
Gênero, Pan (2020) é uma obra a meio caminho da linguagem, com suas estações, suas fotografias que se movimentam. É um filme sem respiros, uma experiência que se estende ao longo de um único cordão. Tentar decupar cada detalhe de suas simbologias, organizando-os apenas racionalmente, sem a integridade do acontecimento cinematográfico, é um esforço fútil. O jogo do isolamento e da cooperação, da luta e da tomada pelos sentimentos, reflete algo essencial daquilo que está sendo vivido hoje.
É intrigante pensar a experiência dessa obra reduzida a um espaço que não é capaz de expor todos os seus detalhes, ou de exibir seus planos com a amplitude da qual necessitam. Enxergar essa versão redux, comprimida e achatada pelos limites do computador, é, em si, uma experiência própria. É um novo objeto que é criado com a transformação de seu veículo planificado — se ele é menos rico, acurado e cheio de detalhes que a ideia de seu original, ele também encerra seus sentidos e imagens próprios, e encerra consigo uma experiência única.
Transformando o objeto, no entanto, mais do que alteração das dimensões, está a ausência do encontro coletivo. A experiência compartilhada do riso, da angústia, da afronta, é que consegue animar aquelas sensações que são despertadas olhando para dentro do espelho da projeção. Sem o encontro coletivo a conversa com as imagens — tão ricas, multifacetadas e ambíguas em Gênero, Pan — funciona como um diálogo de surdos, cheio de chiados e interferências, com duas partes que não assimilam o que foi dito.
A distância forçada traz questões muito interessantes. As adaptações realizadas pela Mostra de Cinema refletem problemas que envolvem, de uma forma geral, a cultura no momento de isolamento individual. Essa presença virtual, perene, dissolve o sentido dos acontecimentos — diante do desfile de clássicos, e de novas obras, tão excelentes, tão bem realizadas, onde é possível encontrá-lo?
Uma pergunta como essa é especialmente interessante quando direcionada a uma obra como Gênero, Pan, com sua temporalidade pensada para o espaço do sonho, do delírio coletivo, da reflexão que acontece simultaneamente dentro e fora da consciência. Acompanhar o filme do começo ao fim na comodidade da casa e da tela individual se torna difícil e cansativo, não só pela interrupção de fatores externos, mas, especialmente, pela presencialidade virtual dessas múltiplas opções ao mesmo tempo. O excesso de sugestões, de futuros concomitantes, impossibilita o tempo da remissão, a digestão das imagens em suas transformações, suas idas e voltas.
Se esses questionamentos todos revelam tanto sobre a experiência específica de uma obra, isso não quer dizer que eles também não persistem, em indagações que permanecem constantes com respeito à experiência cotidiana. Onde, afinal, dentro da presença constante de um catálogo on demand, à ponta dos dedos, é possível reencontrar uma experiência de público? Sentir alívio apreensão riso desespero catarse são ainda as questões que ecoam, nessa borda, tentativamente mirando o mergulho individual ou coletivo para dentro da imagem.
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