\\ CONTOS
O liquido escorria das unhaedoãos, dos péalnhareornozelos, e da barrigeitmbigo, … juntando-se ao caldeirão caótico do lugar, alimentando a nova ordem líquida daquele mundo.
Por Tomás Fiore Negreiros
La persistencia de la memoria, Salvador Dalí
Despertei-me.
Desnorteado, tonto, mareado, me levantei mais pelo hábito do que pelas possibilidades prometidas pelo dia. Aquele quarto, onde havia confiado o sono na noite passada, aquele cômodo tão familiar, tão usual, tão meu. Era como se meus olhos retornassem à vida em um local estranho àquele que haviam deixado na noite anterior; como se um véu fino e transparente cobrisse o mundo, estranhando o cotidiano. Não sabia ao certo o que acontecia ali, mas, mesmo que soubesse, não confiava à minha língua a capacidade de expressar o que se passava.
Desnorteado, tonto mareado, estendi o braço na tentativa de alcançar algum apoio, alguma coisa que fizesse figura frente à imensidão ansiogênica que encarnava o ar – Ou talvez fosse a natureza indiferente do ar que, ao contato com meus pulmões, gerasse aquela náusea? Assim como o questionamento, em vão foi a tentativa de enraizar meus pés no chão: a camolchãravesseiro misturava-se e expulsava-se amórficamente, enquanto a lampadentilador era engolida e vomitada por todas as superfícies daquele quarto, gerando confusão entre o que permanecia dentro e o que era expulso para fora. Era como se o mundo, representado pelo meu quarto, se diluísse em movimento, em caos alheio, aniquilando o contorno e a estabilidade que as coisas, agora em estado de vai-e-vem infinito, costumavam se apresentar.
Desnorteado tonto mareado, foi um leve rememorar, um fino e pontiagudo fio de memória que carcomia a parte posterior do meu crânio, um “ter sabido algo” reminiscente, um memento a respeito daquele espaço, daquele cômodo, daquele quarto… Isso mesmo, do meu quarto! Foi aquele breve lampejo mimético que possibilitou que cambaleasse no meio da escuridão matutina até a portaredaçaneta, na esperança de encontrar sabe-se lá o que no além-paredes. Quiçá fosse um fenômeno que ocorresse apenas nos quartos daquele lado da rua; talvez algo que comi na janta do dia anterior…mas o que havia jantado ontem mesmo? Não conseguia me recordar dos eventos que antecederam o meu adormecer. A incógnita daquele nascer do sol revelava-se embalsamada pelo mistério do seu pôr por entre as montanhas … Era uma grande bola de fogo escura que se adensava, atraindo matéria e escuridão onde haveria de ter luz. Escurecendo, escurecendo, escurecendo até o mundo apagar-se novamente.
Espreguicei-me
Desnorteadotonto mareado. Um momento de trégua e misericórdia da luminária celeste e pude cair por mim, isso é, naquele não-eu, naquele corpo diante da portaredaçaneta. Encarava com as pontas dos dedos aquela esfera prateada sem poder saber se o calor da palma da minha mão contrastava com sua frieza metálica . O mesmo acontecia com a planta de meus pés, agora nas canelas e distantes da porosidade do chão de pedra; mesmo que me ajoelhasse, algo me dizia que as raízes de meus dedos cresceriam ainda mais para fora da terra em direção ao céu, como se houvessem brigado entre si durante meu sono. O meu tato tornou-se alheio ao mundo, dificultando infinitamente minha jornada até o além-paredes. Parado ali, acompanhando o movimento incessante do cômodo, um verdadeiro coração pulsando e bombeando matéria para depois expulsá-la. Fiquei parado, mas, ao mesmo tempo, em movimento: eu.porta; eu,porta; eu-porta; euporta: peuorta, poeurta, poreuta, porteua, porta-eu, porta eu.
Desnorteadotontomareado. A total impossibilidade de expressar o recém-ocorrido não tornava a experiência menos real: vivia ela na total fusão de meus pulmões com meu coração; ofegava em cada batida, sentindo cada gota de sangue e molécula de oxigênio percorrer todas as minhas extremidades. Tentava estimar quanto tempo durou aquela metamorfoseação entre meu corpo e a portaredaçanetuarto, mas não sabia se tratava de segundos, minutos, horas, ou até mesmo anos… minha única certeza era de que havia sido tempo suficiente para eu ser tragado para um lugar que já não era o mesmo, era outro.
Desnorteadtontmareado, ao mesmo tempo que tentava conquistar novamente o fôlego que perdera desde o começo do dia, fui colocando meus olhos naquele novo espaço que estava a minha volta, como se procurasse algo; algo que não sabia ao certo o que era. Não sabia dizer onde estava, mas sabia que o que procurava não podia ser achado, procurava o meu enxergar. Era como se estivesse cego, mas experimentava uma cegueira diferente: conseguia distinguir figuraoisantes, mas ao mesmo tempo não; era como se a luz do sol novamente voltasse a falhar em pleno funcionamento. E eu, submerso nessa escuridão clara, me via na ambígua condição de ver os objetos, mas não como antes, como aquilo que eram para mim, mas sim com estranheza, sem referências ou equivalentes conhecidos. Não os enxergava como eram.
Respirei
Desnorteadontareado. Já via como infundada minha antiga crença de estranhamento-entorpecido devido à natureza tóxica dos áres do local do meu despertar: estava tão sóbrio quanto uma manhã de terça, respirando agora o oxigênio provindo do além-paredes. Era aquilo, o Além-paredes, que trazia a mesma pontada mimética no crânio de outrora, um incômodo agudo dizendo-me que conhecia aquele novo espaço. Um desconforto que gemia e, ao se arrastar pelo ambiente, me intuía sobre a familiaridade daquele espaço, sobre como compartilhei uma história com aquele cômodo, como, da mesma maneira que ocorrera no espaço em que havia despertado, aquele novo aposento, em um outro tempo e outro universo, fora caro para meu eu…ou melhor, para meu antigo eu. Mas agora, tirando o fio de memória que me furava o cérebro, o espaço já não era mais nada. Tudo vazio, oco preenchido, presença sem nome. Os olhos do meu eu-presente já não me reconheciam, já não me permitiam meu passado.
Desorteadotarado. Não sabia quanto tempo estive ali explorando a topologia dos meus sentidos, mas foi o suficiente para poder notar que aquela presença muda falava: falava, mas não como as pessoas costumavam conversar comigo durante o dia; falava, mas não como na letra da música que tocava no rádio ligado pelas manhãs; falava, mas não como a melodia dos pássaros que cantavam nas árvores e pousavam na frente da janela do meu quarto. Era uma língua diferente, era fluente em chiados, ruídos e barulhos crus e estranhos que saiam da janelidro, da bocarentes das figuras ali presentes e alcançavam meus orifícios, mas algum ponto do meu eu não era tocado. Conseguia ouvir, mas o gemido mudo não me permitia escutar. O som assumiu tonalidades acinzentadas (se é que a coloração não trazia alguma mínima afeição pelo ruído) de indiferença e incompreensibilidade, não me chamando, não me requisitando, não me dizendo respeito. Mas de algum modo aquela presença muda, vinda do ar, das coisas, das paredes, do meu estômago, essa presença onipresente falava…não, ela gritava, mas não dizia nada.
Expirei
Derteadorado. A verdade sobre o meu escutar era aterrorizantemente ensurdecedora, impossibilitando que pudesse saborear a melodia daquele dia, como se não pudesse ouvir o testemunho da lua que havia me entregue ao mundo onírico, e menos ainda o parecer do sol que havia me despertado. Mas ingênuo seria eu caso acreditasse que apenas os meus ouvidos haviam sido afetados, que a disfunção fosse regionalista: como um todo, sem mais nem menos, meus sentidos tornaram-se completamente alheios a mim mesmo, traindo-me em complô com aquela atmosfera de nebulosidade transvestida em nada. As raras vezes que sentia algo, minhas percepções se misturavam, assim como meu corpo se diluía. Os sons me vinham pelos dedos ao mesmo tempo que tinha de lutar para que meu nariz não entrasse na minha boca; o mesmo acontecia com meus olhos que, quando se deparavam com algo que minimamente lhes dissesse algo, tinha de ter cuidado para ver se não se tratavam de minhas orelhas ouvindo ou minha boca falando.
Dertadrado, acompanhando o movimento das coisas e das minhas percepções, meus pensamentos já não eram sólidos diante do inominável. Muito pelo contrário, eram aglomerados amórficos, neologismos incessantes, onomatopéias descontextualizadas, disparos de energia que refletiam e impulsionavam o movimento incessante e indiferente do mundo; eram massas de chiclete mascado que raramente pareciam trazer algo à tona, mas, quando emergia algo, já não havia mais sabor que possibilitasse à minha língua desfrutá-los no prazer da fala. Me perdia perante àquele redemoinho desfigurado que já não conseguia me identificar mais – será que se tratava da imagem especular da minha fisionomia atual? Era preenchida e abraçado pelo caos, mas seria mais realista assumir que o mundo já não me considerava tanto ao ponto de me envolver no calor de seus braços. Pelo contrário, ele havia me esquecido
Estremeci
Deradado, já não sabia se o mundo girava ao seu redor ou se era seu pensamento que vertiginava no espaço e no tempo. Era naquela total indigência de referências que o enjoo pareceu-lhe uma dádiva frente à infamiliaridade do sol; a leve lembrança do líquido quente e ácido que arranhava sua garganta e queimava suas entranhas quando a gastrite costumava dar sinais de vida parecia agora uma benção. Mas não foi o que aconteceu quando abriu sua boca: o que jorrava não vinha das entranhas, mas sim da própria boca, seus dentes, sua língua…era como se gotejasse saliva e suasse suas amígdalas.
Derado. Olhou para baixo. Para aquilo que a língua, agora derretendo em si e jorrando pelos buracos inaugurados nos dentes, não possibilitava mais expressar e viu o restante do corpo entrando em estado de goteamento. O liquido escorria das unhaedoãos, dos péalnhareornozelos, e da barrigeitmbigo, … juntando-se ao caldeirão caótico do lugar, alimentando a nova ordem líquida daquele mundo.
Dedo gotejava como não-gota, como verbo inominado. E nesse movimento diluiu-se … era ele que se chorava, voltando a sua poça-mundo, à indiferença caótica do mundo que lhe era estranho, mas ao mesmo tempo, agora o acolhia como nada aconchegante. Desnorteado, tonto e mareado.
Adormeceu.
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