\\ CADERNO DE ANOTAÇÕES
Nas festinhas de hoje, cada um se sente na obrigação de levar a própria comida para evitar briga!
Por Matheus Lopes Quirino
Miriam Hathout - 'Red Tomatoes' (reprodução)
Intolerância não é só da lactose. Oferta no atacado dos sabores, gostos e ideologias, não há gôndola que escape de um sarrafo bem dado, como uma bifada na cara. Bifada, não, bofetada. Pensemos, literalmente, no pedaço de músculo duro sendo esparramado na face rechonchuda do revés. Este, impreterivelmente carnívoro, o novo facínora da praça de alimentação. Antes era o ovo. Hoje é qualquer bife com arroz e feijão o vilão inescrupuloso.
Longe dos prazeres da carne, papando uma fatia de margherita, endossada com largas fatias de queijo borbulhante, pensava no fla-flu já batido às claras, quando pela tomada ideológica o embate carnívoros X veganos volta como prato principal do assunto. Na cocção do ativismo culinário, seguindo o novo cardápio repleto de restrições, um amigo dizia sobre o sentimento recente de “arroz empapado” em que se encontravam as confraternizações de uma turminha: cada um levava seu quitute, justamente para evitar conflito e apaziguar os ânimos.
Soou estranho. Música, amigos e festa, sinônimo de união. O selo de qualidade que chancelará tudo isso: o rango. Quando até o rango torna-se divisível, o que mais eles querem? Envoltos num terreno gorduroso, dá-se a engorda da discussão, por vertentes não menos ideológicas, quando a militância do alface brada em favor dos animais, mas usa jeans americano, consome plástico indiscriminadamente e usa sapatos caros de couro.
Esse individualismo quituteiro seria a porta de entrada para um jantar liberal? Cada um traz a sua comida, seus guardanapos, copos descartáveis e seu próprio lixo – suas próprias músicas, portanto, pois não suportam a trilha do outro. Comem e bebem a sua medida, não ousando excesso, portanto, dificultando a embriaguez – às vezes, necessária – e alimentando, erroneamente, a lombriga alheia. Falam pouco, baixinho, situação econômica do Irã, Jacques Lacan, A morte de Ivan Illich, sem palavrões.
Então não é mais união o sentido das tais gastronômicas efemérides. No lugar da celebração, da partilha, do entrosamento, vê-se simplesmente um jantar cordial, sem sal, pimenta malagueta, ketchup ou tarja preta – a amiga que mistura parou de beber em público depois de fazer topless à mesa de uns conhecidos que ficaram horrorizados.
Mas na contramão da mesquinharia dos petiscos, pedir uma big pizza e cada um rachar sua parte, sem outras prerrogativas, tornou-se a opção mais convidativa e sociável. É coisa de jovem. Primeiramente, rejeitam-se todos os sabores burlescos. A de queijo (sem manjericão) leva o troféu, como sempre, finalmente! No final do rodízio da amistad, é irremediável a balbúrdia no ato de pagar a conta (ou o pato?). Indigestão. Ninguém sai satisfeito com uma simples pizza de mussarela.
Rodízios, jantares compartilhados, cujo papo embala a massa pastosa que vai se formando na boca ao longo da noite: um perigo. Sempre uns comem de mais, outros de menos. Falta dinheiro (outra coisa dos jovens) na conta exata do “Eu comi dois pedaços e meio”, portanto x, o troco vai para o espaço. O garçom fica puto. Ameaça chamar o gerente, vai o amigo com pinta de advogado, na maciota, enrolar o já fustigado atendente. Nunca adianta. Arregam na taxa de serviço. Palitam os dentes, esparsos na sagaz petulância do “já comi, já dei minha parte, resolvam ai! ”.
A conta não fecha. Xingam-se de um lado para o outro. Vinho demais. Quantas foram as sobremesas? Clássico: perdi a comanda, anotou errado. Dinheiro ou cartão? Garçom pidão. Nada se resolve. Contam as moedas, ou revezam as máquinas de cartão. Os fortes já partem para a digestão no sofá na mais-valia na poltrona da saída. Veganos xingam carnívoros, embora quando o assunto é dinheiro, rapaz, não há união mais grudenta. Uni-vos, comilões de boteco.
No fim das contas, era melhor ter jantado em casa, botar a mão na massa e fazer uma coisinha; e dar-se assim por satisfeito!
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