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Salvar o mundo

\\ CADERNO DE ANOTAÇÕES

Em que momento eu desisti? Pergunta a moça, já farta dos demasiados pudores que leva consigo pela vida. Com o açúcar diet, o café diet. Que merda, ela pensa

Por Matheus Lopes Quirino


"In a café" (1873), por Edgar Degas.

A colher de pessimismo adoça o café preto com açúcar para diabéticos. Não é bem açúcar, mas é como se fosse. A colher gira incansável, forma um rodamoinho na pequena xícara e aos poucos some o líquido preto, que deixa apenas um rastro, uma borra, e o açucarado corpo de fundo.


Em que momento eu desisti? Pergunta a moça, já farta dos demasiados pudores que leva consigo pela vida. Com o açúcar diet, o café diet. Que merda, ela pensa. E completa com um suspiro imaginário “O que eu fiz para merecer isso?”. A única pergunta sem resposta absoluta. Deposita a xícara na pia e vai para a sacadinha. Observa o escuro da noite se apoderar dos becos estreitos e vielas que não dão a lugar algum. Escuta sirenes e sons alarmantes dos outros apartamentos. Está só, com gosto de café na boca. Escuta Palavras, do Rei. E em algum momento pensa em que diabos anda pensando. Sem saber o que pensar já imersa no pensamento. Ela é o próprio anti-herói. A anti- heroína de si, ali parada de crocs e jeans folgado.


Ela vira para escada, não se deixa consumir. Vem a próxima faixa e ela embala só em uma badtrip por não saber se cede à tentação ou persevera. Os noticiários são como vampiros sedentos por sangue. Pálida, ela desfalece em frente à televisão, e não há canal que a conforte. Por algum motivo, tudo ali cheira a desigualdade, até os programas que falam de desigualdade. O mundo está em chamas, ela, dentro do apartamento. Ainda não desceu para apanhar a correspondência com medo de ser incinerada.


Os céus tampouco mandam afago, chuva ou vento para dispersar as queimadas. O ano é 2032, a floresta amazônica virou um receptáculo caríssimo comprado por uns sheikes. O que se sobrou dela, depois que o presidente foi decapitado pelo próprio filho, a ema tomou o poder por uns dias e as coisas foram ficando bizarras. Era de se esperar que os céus mandassem fogo, para que tudo começasse do zero. Mas nada. Os verdugos chegaram nos porta-aviões com seus estiletes gigantes e limaram o verde para o concreto passar. Tudo isso foi noticiado, não em papel, que acabou junto com a floresta, mas nas telas digitais que consomem os escravos que estão nas pedreiras lutando por cálices d'água. Aos privilegiados, que esperam o fogo, volvam dez, vinte anos, a distopia ainda era escrita. Estava em declínio, o mundo de hoje não é brinquedo não. É lança-chamas.

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