\\ CONTOS
Um pouco por vergonha da caduquice e também para não incomodar desistiu de pedir ajuda e passou a conviver com aquelas aparições.
Por Wagner Andrade de Almeida, colaboração para Frentes Versos
As paredes daquela pequena casa foram testemunhas silenciosas da vida de Lena, naquele lugar ela conheceu o misto de dor e prazer provocado pelas mãos ásperas do pedreiro a deslizarem sobre sua pele num jogo alternado entre pernas, seios, bunda e sexo. Alí, pariu e criou seus filhos, disse adeus para alguns, cuidou de netos, e também, viu a aspereza do pedreiro aumentar e se transformar, primeiro num silêncio sem gozo, depois num abandonar cirrótico.
Na ligeireza dos anos Lena ficou mais lenta, agora o simples ato de vestir sua camisola e cair na cama tinham se tornado uma espécie de Paris Dakar, cheios de obstáculos e incertezas com sobras de dores pelas juntas e a sensação que não chegaria ao fim.
Aceitava resignada a condição, afinal considerava que, se bem medido, havia vivido quantidades similares de sofrimento e alegria que uma vida poderia oferecer. Mas nos últimos tempos alguma coisa a afligia e não era o medo da proximidade da morte, era uma sensação oca acompanhada da visão de sombras estranhas no seu quarto, que pareciam brotar pelas paredes feito os ramos de cajueiro e nas suas pontas, pequenas lagartixas com aqueles olhinhos de íris oblonga parecendo sorrir para ela.
Assustada, na primeira vez pediu socorro ao filho, que zeloso procurou nas paredes qualquer traço das aparições, mas como não achou, respondeu num tom entre preocupado e jocoso;
- Tem nada não Mãinha, deve de ter sido sonho.
Um pouco por vergonha da caduquice e também para não incomodar desistiu de pedir ajuda e passou a conviver com aquelas aparições. Certo dia entre visões e sonhos lembrou dos tempos de infância nas terras dos pais.
Brincar entre os cajueiros, mangueiras e umbuzeiros, no terreiro da casa. Levar o almoço para os irmãos nos roçados distantes, ajudar na casa de farinha e principalmente do amor de irmã-mãe que sentia por Maninha, a caçula da família.
Iam juntas para todos os cantos e partilhavam brincadeiras só delas. Nas noites sem lua, as estrelas pareciam cair do céu, então as meninas se deitavam no terreiro e imaginavam alcançá-las com as mãos e num movimento rápido cobriam-se como um véu de santo de igreja.
Lena sentiu um afogo quando outra lembrança estalou. Um dia enquanto lidava com a criação viu ao longe Maninha chacoalhando alguma coisa com as mãos. Apertou os olhos e teve a impressão de ser uma cobra, seu sangue gelou, correu até ela rezando.
Ficou aliviada quando viu que Maninha tinha na mão uma lagartixa, ou melhor, o rabo dela, o restante do corpo estava no chão saracoteando enquanto fugia. Na dúvida, Lena procurou a mãe e contou o ocorrido. Sua mãe com a experiência de uma parideira de 14 filhos respondeu:
- não se avexe fia, não há de ser nada não e olhe não há de ser nada também pra lagartixa, vai cresce outro rabo;
Lena espantada e com a ingenuidade típica das crianças perguntou:
- É mesmo? E com gente também é assim?
- É não fia, quando gente perde um pedaço, quase sempre, perdido está.
Sim, lembrava de seus pedaços, o mais dolorido foi quando levaram Maninha para viver longe, nunca mais soube dela. Depois as terras, os pais, irmãos, numa sucessão de desligamentos.
Uma senhora de cabelos branquinhos entra no quarto, senta-se na cabeceira e pega na mão de Lena;
Sou eu, lembrada não?
Aquela voz, não podia ser, sim, era ela, Maninha. Lena apertou a mão entre as suas, mas faltou voz e entre choro e riso, olhando os olhos de sua irmã sentiu crescer o amor que só a irmã–mãe tinha, brotando das mãos em direção aos braços e dos braços ao peito como os ramos do cajueiro preenchendo os ocos do seu ser, interligando todos os pedaços, terreiro, manga, umbu, casa de farinha, mãe, pai, irmãos, estrela e continuar até envolver as duas como um véu de estrelas dos santos de igreja.
Comentarios