\\ ENTREVERES
Lembrei do dia em que estive na joalheria e lá escolhi aquela joia preciosa, aquela pequena razão que, um dia, quem sabe um dia, eu pudesse sair até mesmo nua e com aquela gargantilha
Por Matheus Lopes Quirino
Tudo começou em uma terça-feira no caminho de casa. Andava ereta na rua, tentando prender um relicário ao pescoço, amarrar as tranças, amassar uma caixa de suco, sorvendo até a última gota do que estava ali dentro. Isso era tudo para o almoço. Dividia uma vitrine com algumas outras mulheres blasés. O ar era pesado. Era uma tarde de inverno, minhas pernas doíam pois os músculos se contraíam sozinhos, como se uma espécie de medo tomasse só as pernas e, impassível, não pudesse seguir, ficando retida naquele cruzamento da Major Luiz com a Clemente Lopes.
A blusa de brim cabia perfeitamente, mas talvez a manga precisasse de uma dobra – coisa que eu não poderia pensar em opinar. Ao meu lado, no chão, via as sombras de alguns braços gesticulando feito povos do mediterrâneo. Do outro lado, uns arcos improvisados, umas rendas soltas, cetim, plástico bolha e revistas Vogue. Um lábio vermelho tingia-se mais e mais. Levava uma bolsa comigo, em minha caminhada solo.
De início, prestei atenção à bolsa, tornando-me aos meus desvarios, minhas premonições, minhas afirmações vãs ou levianas. Estava preocupada com a gargantilha que levava dentro da bolsa, com as pedras da gargantilha. Não eram preciosas, nem nada, mas simplesmente era o que eu tinha à época, depois de ser exonerada, minha dignidade estava ali.
Quando, de repente, uma faca veio ao meu pescoço, meus pensamentos concentraram-se naquilo que estava dentro da bolsa. Senhoras ao meu lado pediam calma, minhas pernas estavam duras e doíam como se fossem apertadas pelas mãos de um gigante. Naquele momento, senti escorrer pelas pernas um líquido gelado, como se saísse de meu corpo um fluido, que não sangue, e banhasse toda a calçada em manchas negras, sem odor. Era um fixador vencido, escorrido pelas minhas costas.
Pensava na gargantilha conforme era possuída por aquelas mãos grossas como as de um gigante, e a calma que me pediam na rua era assentida. Estava completamente sã e concordando com aquilo, andando devagar, com a faca no pescoço. Lembrei do dia em que estive na joalheria e lá escolhi aquela joia preciosa, aquela pequena razão que, um dia, quem sabe um dia, eu pudesse sair até mesmo nua e com aquela gargantilha nada me impedisse, tão ofuscante seria sua beleza usada pelas minhas formas.
Vestia um poncho, por causa do inverno, mas não tenho certeza se embaixo dele havia uma saia. Caí por um instante na conversa de uma senhora que suplicava ao bandido “Deixe-a, tome a minha bolsa”. Naquele momento não entendia, olhava para minhas mãos: minha bolsa havia desaparecido e, como num passe de mágica, estava só e nua, no meio da cidade, como uma artista. Era começo da manhã. Trocavam as roupas das outras mulheres.
Olhei para a senhora ao lado, pálida e frígida, ela agora usava a gargantilha que estava em minha bolsa. O cenário havia mudado outra vez. Era uma vitrine de verão, com maiôs e alguns biquínis. Faltava meia hora para as grades subirem.
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