\\ ENTRELINHAS
Me reconheço em todos os isolamentos: de Sylvia Plath, Kafka, Camus, Dostoiévski, Clarice. Todas as prisões, quartos, subsolos, redomas. Por um instante a sensação é acolhedora, em meio à claustrofobia
Por Giovana Proença
Olhei-me no espelho, o fato era comum. O dia, também comum, escorrem todos pelo calendário, em fluxo no isolamento. Escoam com tanta afluência que parecemos estar diante da mesma página, todos os dias. Os acontecimentos que chegaram, já partiram, sem adeus. Os que virão, já foram. Nos resta apenas encarar o escorrer nas páginas do calendário. O retrato em repouso no móvel abaixo do espelho, que abria o olhar para todo o cômodo em sua posição horizontal de paisagem, revelava uma fotografia. Foi meu espanto constatar sua eternidade ao tempo, que mais do que nunca, confrontava meu mutável reflexo.
Fecho os olhos e sou transportada ao leste europeu. O homem do subsolo, lá estou, uma voz em isolamento, um eco inconsciente que ataca à tudo de seu próprio tempo – porque em nosso tempo há muito o que atacar, bem como devia existir na época que Dostoiévski deu vida a personagem de seu anti-herói rasteiro. Aqui, sem sufocar os anseios, nesse espeço vazio do meio-termo e da dualidade que permite criticar tudo que vejo.
Volto às minhas terras verde e amarelas. Não me afasto geograficamente, entretanto. Quem me controla nasceu em solo ucraniano. Na tônica lispectoriana, me sinto acuada no quarto, “já recuara tanto que minha alma se encostara até a parede”. Sinto-me G.H, e quase posso ouvir ela, seus passos mínimos no assolho de madeira, as antenas em movimento. Tento, tento, tento explicar. A barata se aproxima. “Finalmente, meu amor, sucumbi. E tornou-se um agora.”
Sucumbi pois encarei a barata. Face a face, outra face dela própria. Sinto os cascos em minhas costas, “Porque Gregor Samsa encontrou-se, em sua cama, metamorfoseado num inseto monstruoso.” Kafkianamente, não me reconheço. No escuro, quase sem dormir, penso no dia que voltarei à luz.
“O mundo inteiro é um sonho ruim.” Me encontro dentro da redoma de vidro. Não há escapatória. Uma redoma pela qual enxergo o mundo sem o toque, barrado pelo gélido cristal. Como pedir ajuda à Sylvia Plath, se sequer ela se salvou desse lugar? “Eu sou, eu sou, eu sou...” O estrangeiro. L’étranger. O turvo sol argeliano de Camus não me chega nessa sombra. Mas já vivi um dia, posso viver outros cem isolada, todos iguais.
O mundo inteiro é um sonho ruim / um inseto monstruoso/ um homem que houvesse vivido um único dia poderia sem custo passar cem anos numa prisão/ o melhor é não fazer nada/. Finalmente, meu amor, eu sucumbi. Me reconheço em todos os isolamentos: de Sylvia Plath, Kafka, Camus, Dostoiévski, Clarice. Todas as prisões, quartos, subsolos, redomas. Por um instante a sensação é acolhedora, em meio à claustrofobia. Um olhar, e sou transportada pela contemplação. Esse é o perigo da proximidade. Violei a ameaça, não havia mais tempo de desviar. O fato era comum: olhei-me no espelho.
Deixo aqui a foto dos livros citados.
A metamorfose - Franz Kafka
Memórias do subsolo - Fiódor Dostoiévski
A paixão segundo G.H - Clarice Lispector
O estrangeiro - Albert Camus
A redoma de vidro - Sylvia Plath
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