\\ ENTREVERES
Olhando os ponteiros, algum dia ainda é verão
por Matheus Lopes Quirino
Estou enrolado no roupão, parado em frente à janela com algumas ideias atordoantes. Esqueço do tempo, continuo ali sem dar bola para o relógio, cujos ponteiros vagam mais que o próprio dono do reflexo na vidraça. O maquinário talvez esteja fraco, não é suíço, é chinês. Talvez por isso ele se demore e, de súbito, pare algum dia, provavelmente no dia em que eu mais precise saber das horas.
Imagino estar cruzando a Av. Paulista em um dia nublado, com um pouco de pressa, atordoado pelas ideias que não me largam. No pensamento, carrego uma porção de sacolas que marcam meus braços esguios. Estou com uma camisa de botões de manga curta, na mochila, agasalhos se apertam com livros, blocos de anotações, remédios, necessaire, meias sujas, a roupas de ontem, depois de dormida e suada. Algum dia ainda é verão.
Estamos no verão. Impossível não lembrar da Bethânia com o vozeirão grave no dueto com Adriana Calcanhoto. Escuto “Estamos no verão, se é noite e faz calor/ para que serve uma canção como esta?”. De repente, estou na mesma avenida saindo do Blue Note, no Conjunto Nacional. Era em algum dia de verão. Desisti dali e desci a rua Augusta para comer um sanduíche sírio.
Não há relógio e nunca houve. As horas se espreguiçam, infernais, jogando ao tempo e fora dele, irreversível, uma possibilidade de voltar a refazer os passos de algum dia, quem sabe entrar no bar de jazz? Descer o lado oposto da rua? Voltar para casa? Não, não faz sentido. Os dias se arrastam lentos, caminhando para um suposto inverno, inverso do verão, onde as noites quentes embalavam o tempo sem pressa. Até que demorou para chegar onde chegamos, mas se eu soubesse, aproveitaria um pouco mais, não andaria com pressa. Nesse momento puxo a cadeira e me sento, tomei o último gole do cappuccino e começo a trabalhar pela manhã.
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