\\ INFINITUDES
Prometeu precisava vir. Ela precisava da porra do isqueiro, ou teria subido naquele prédio pra nada.
Por Isabela Nunes
TRÊS COISAS SOBRE AS MULHERES DA FAMÍLIA CHRONIS EPITEMEIA
(em: Mitologia, Mito, Folclore, Causos Urbanos – edição comemorativa de 5 anos, quadro da p.50)
1. Toda mulher C. Epitemeia recebe duas heranças principais (obrigatórias): o nome (DORA) e uma caixa com fósforos. (Versões mais antigas constam uma caixa com velas em vez de fósforos).
2. O epitáfio de todas elas diz: tudo em mim quer luz. (Sublinhado negociável, a depender da lápide).
3. Todas as mulheres C. Epitemeia morrem por fogo.
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SEM AUTOR SEM DATA MAS COM TÍTULO: PROMETEU NÃO VEIO
— Ô porra, cadê ele?
— E eu sei?
— Ele disse que vinha à noitinha.
— À noitinha já foi.
Dora cruza e descruza as pernas, nervosa. Lá no alto, a lua projeta um halo branco-amarelado sobre as nuvens e por todo o céu há sombras cinzentas contra o preto da noite. Embaixo, as luzes da cidade, os carros apressados, os barulhos da vida noturna. Nunca houve nada tão bonito, Dora pensa. Quase se permite pensar que aquilo tudo foi pintado só para ela, para o que faria naquela noite.
Prometeu precisava vir.
— Sem ele não vai funcionar.
— Claro que vai, Dora. É só mudar seus planos um pouquinho, nada demais.
— Não dá. Eu não consigo se ele não tiver aqui. Preciso que ele me traga o negócio, e preciso dele comigo na hora. Sem ele não dá. Já falei mil vezes, caralho.
— É que a gente já podia ter começado, né. Tá tudo aqui. A gente não precisa dele pro fogo. Cê tem os fósforos, eu tenho aquele isqueiro velho. Tá tranquilo, Dora. Esquece ele.
— Como cê sabe que eu tenho fósforo aqui?
— Segredo capital não era. Eles tão caindo do bolso da sua calça desde que a gente chegou, vai me dizer que não viu? Até você sabe que o Teus foi embora pra não voltar, senão não teria esse plano de contingência aí. Tô vendo cê passar os dedos por essa caixinha que nem uma doida maníaca tem mó tempão. Cê não taria nervosa assim se ele fosse vir mesmo.
— Sabe que minha vó dizia que guardar fósforos no bolso é perigoso? Que uma vez ela tava na fila do banco e do nada o bolso dela começou a queimar. Teve queimadura séria, parece.
— Ué. E você guarda eles mesmo assim?
— É.
— Por quê?
— Adrenalina.
Silêncio.
— Quem gosta de andar com isqueiro é o Teus. Fósforos são mais minha cara, acho. Isqueiro só explode se tiver muito perto de outro fogo, tipo churrasqueira. Adrenalina zero. Mas o fósforo é só forçar um pouquinho a parte vermelha da ponta. Um baque mais forte, uma fricção bem dada, uma calça um pouco úmida e puf: a parte dele que é fósforo branco entra em combustão espontânea. Uma centelha basta, vovó dizia. Porque aí, se um fósforo se acende, todos os outros vão junto. Não tem explosão nem nada, mas é bonito de ver, é uma chama bonita. Vovó disse que quando aconteceu aquilo com ela ela não conseguia parar de olhar. Pro fogo. Ficou meio que extasiada, olhando a mini labareda crescendo e crescendo, dançando no corpo dela. Provavelmente é por isso que a queimadura foi tão feia.
Silêncio.
— Mas é raro, sabe. Isso da combustão espontânea. Bem raro, na verdade, ainda mais hoje em dia. Talvez até mais raro que isqueiros explodindo em churrasqueiras
— Ninguém liga, Dora. Vamo logo com isso, o que cê acha?
— Sem ele não dá.
— Ah, puta que pariu. Porra, Dora, o cara tem os próprios problemas também, cê sabe né? O Zeca tá puto com ele por causa desse caralho de isqueiro que cê pediu. Tá todo mundo puto, na real, e o Teus não quer de jeito nenhum pedir desculpa. Eles não vão demorar a suspeitar, cê sabe o nível da galera por lá. É claro que ele não ia vir hoje. Tá todo mundo puto, Dora. E não sei nem por que cê pediu essa porra de isqueiro se tá aí defendendo a pureza do fósforo.
— A culpa não é minha, Meco. Nem vem.
— É, vai nessa. Quem planejou isso tudo aqui hoje foi quem? Ninguém mais quer isso, Dora. Só você. É problema seu, sempre foi.
Silêncio.
— Sei lá o que cê vai fazer, mas eu tô vazando. Não tô no clima de te aguentar hoje não. Se o Teus vier me dá um alô. Mas eu duvido.
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BREVE HISTÓRIA DO ISQUEIRO DE
PANDORA (DORA) CHRONIS EPITEMEIA MV (MILÉSIMA QUINTA)
(em: Vestais, Pítias, Bacantes e Amazonas: o guia da sacerdotisa, coluna ‘Curiosidades de Epitemeia’, p. 71)
O mito clássico era assim: Prometeu rouba o fogo dos deuses e o dá aos homens; Zeus fica puto e o amarra a uma montanha onde uma águia virá comer seu fígado regenerante todos os dias; Zeus pede pra Prometeu pedir mil perdões senão vai ficar ali mesmo quietinho pra sempre; Prometeu manda Zeus ir à merda que não vai ter pedido de desculpa nenhum; Zeus fica mais puto ainda e então cria Pandora, a primeira mulher, como castigo aos homens; Pandora se casa com Epimeteu, irmão de Prometeu; Pandora ganha de presente de casamento uma Caixa Proibida ornamentada e lindíssima; Epimeteu a proíbe de abri-la; Pandora abre-a assim mesmo porque foda-se o Epimeteu; e aí da Caixa Proibida saem todos os males do mundo, como a miséria e a pobreza e o desamor e a tragédia; e aí quem se fode são os homens.
Essa versão do mito, apesar de popular, é uma interpretação equivocada dos acontecimentos reais, que se desenrolam na seguinte ordem (preste atenção): Prometeu faz uma gracinha com os sacrifícios de Zeus; Zeus fica puto e cria Pandora para seduzi-lo e puni-lo; Prometeu se casa com Pandora porque ela é, hum, gata pra caralho; Pandora traz consigo uma Caixa Proibida que Zeus lhe deu de presente de casamento e que de jeito nenhum é pra ela abrir; Pandora abre a caixa porque é curiosa e, né, ninguém é de ferro; Zeus fica tipo muito puto e amaldiçoa ela a um destino trágico cíclico-e-infindável, i. e., uma águia metafórica que vem comer um fígado metafórico ad infinitum; Zeus manda uma carta dizendo que se ela pedir desculpas tudo bem, sem caô, mas Pandora fala que nem fudendo que ela vai abaixar a cabeça; Zeus dá uma caprichadinha no castigo e fala que se ele não ouvir um pedido de desculpas agora, agorinha, todas as descendentes de Pandora vão entrar no jogo também; Pandora fica puta e vai atrás de Hefesto pra saber se tem alguma coisa que ele pode fazer; Hefesto conta a Pandora que só o fogo dos deuses é a chave pra liberdade dela; Pandora convence Prometeu a roubá-lo pra ela; Prometeu rouba o fogo mas vira a casaca e o dá aos homens; Pandora não se liberta e se fode pra caralho, levando todas as filhas junto com ela. (ver: maldição de Epitemeia, p. 75).
Dora MV, filha da filha da filha da filha (...) da filha de Pandora, historiadora notável da linhagem C. Epitemeia e compreensivelmente puta com a sacanagem que lhe fizeram por uma coisa que ela nem tava por aí quando aconteceu, passou quase toda a vida procurando por algum resquício do fogo dos deuses que ela pudesse usar para libertar suas irmãs. Quando ela finalmente o encontrou, não sabia como exatamente ele a guiaria para a liberdade sem limites. Decidiu, então, guardar o fogo em um isqueiro prateado, caro, pesado, antigo, até que tivesse reunido pesquisa o suficiente para saber usá-lo.
Zeca, filho do filho do filho do filho (...) do filho de algum semideus filho de Zeus, descobriu a pesquisa de Dora e roubou o isqueiro para si, trancafiando-o no cofre mais bem guardado do edifício O Limpo, companhia de limpeza especializada da família Cronida. Dora tentou recuperá-lo mas endoidou depois de um acidente envolvendo fósforos pegando fogo no bolso da calça. Meio que obcecada com a beleza do fogo, morreu alguns meses depois enquanto acendia um cigarro em casa, sem notar que o gás do fogão estava ligado já há algumas horinhas. O isqueiro se foi e Dora MV explodiu.
Na lápide da milésima quinta Pandora, lê-se: TUDO EM MIM QUER LUZ.
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Prometeu precisava vir. Ela precisava da porra do isqueiro, ou teria subido naquele prédio pra nada. A gasolina já tava ali, as mini-bombas já tavam espalhadas, já tava tudo certo. Mas a pesquisa da vovó não mentia: ela precisava do isqueiro ou não ia funcionar. O ciclo ia continuar pra sempre e todas elas continuariam na mesma luta sísifica sem fim.
Prometeu precisava vir, era isso que o Meco não entendia. Ele a chamava de orgulhosa por querer liberdade, mas ela sabia que orgulho era outra coisa. Meco era um imbecil. Provavelmente já tava indo até o térreo contar pro Zeca que ela tava planejando mandar pros ares o prédiozinho comercial idiota dele. Era assim que ela tinha que fazer, vovó escreveu; tinha que destruir cada pedaço do Edifício O Limpo, porque o fogo só a libertaria se ela destruísse o que a aprisionou.
Mas Prometeu tinha que vir, ele tinha que vir.
Dora olhou para a poça de gasolina à sua frente, cobrindo todo o terraço. O fogo iluminaria o céu inteiro, era o palpite dela. Todas as nuvens no céu, o halo da lua, as luzes das casas, tudo ficaria invisível diante do fogo que dançaria ali, mais forte que o sol. Ela se senta na borda do prédio. Olha para baixo, para os carros passando e pessoas rindo, para todos os sinais de vida que ela amava. Balança os pés em direção ao abismo e pensa que talvez queira pular. Talvez não queira lutar contra o destino, ou talvez lutar contra o destino seja seu destino.
Prometeu virá?
Dora tira a caixa de fósforos do bolso e algo nela grita:
Acenda, Dora
Não acenda
Pule
Não pule
Exploda, Dora.
Tudo em ti quer luz.
Uma centelha basta.
Acendeu
Pulou
Explodiu
E Prometeu não veio
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