\\ ALEXITIMIA
Prezar pela população brasileira cada vez mais tem se mostrado necessário em frente ao atual governo.
Por Lia Petrelli
Dia 3 de novembro o Amapá voltou no tempo.
Tenho pensado sobre isso – sobre as ideias quase irreais, as famosas produções sci-fy que levam nossa mente a vagar por ambientes inimagináveis aonde o tempo volta, avança, se presentifica, e permanece no limbo.
O ano de 2020 parece ter sido uma suspensão do tempo cronológico, desde declarações inacreditáveis de governos ao redor do mundo, a situação que teve início semana passada.
Fomos desligados do mote linear de compreensão temporal quando a pandemia do Covid-19 se instaurou na Terra: porque sim, pela primeira vez na história a conexão globalizada permitiu que o mapeamento de focos de contágio fosse traçado e compartilhado por ondas wi-fi, em tempo real. Até aí pareceu mesmo que o avanço acontecia.
Não farei aqui uma recapitulação do que foi o ano, pois tenho para mim que cada pessoa pôde habitar a individualidade do tempo proposto pela humanidade – com isso quero dizer que, ao meu ver, o tempo interno foi experienciado por cada pessoa de um jeito muito único; as coisas mundanas e globais sabemos por acompanhar jornais e notícias (mesmo através das redes sociais), relembrar todas as quedas sociais que enfrentamos durante o ano não fazem sentido.
O incêndio que atingiu a subestação da concessionária Linhas do Macapá Transmissora de Energia (LMTE), da Gemini Energia, controlada pela Starboard Partners – anteriormente pertencente à espanhola Isolux, fez com que o estado do Amapá se apagasse por completo por cinco dias inteiros.
A unidade onde o fogo se alastrou operava com um transformador reserva e um em manutenção desde o ano passado, segundo o Ministro de Energia de Minas Gerais, Bento Albuquerque.
A empresa, procurada pela imprensa para esclarecimentos imediatos, não respondeu até agora.
90% de um estado inteiro permaneceu na escuridão por 120 horas.
As causas e responsabilidades do incêndio ainda estão sendo apuradas sob os cuidados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), e o Ministério Público Federal (MPF) instaurou um inquérito para apurar os responsáveis pelo apagão, no entanto não existe prazo algum para a conclusão desta análise.
A Justiça Federal do Amapá decidiu no sábado (07/11/2020) que o prazo para o restabelecimento da energia é de três dias, porém Albuquerque projeta que ainda levarão 10 dias para que 100% dos serviços sejam restabelecidos.
Neste fim de semana o sistema elétrico começou a ser retomado após algumas operações que contam com o serviço da Força Aérea Brasileira e da estatal Eletronorte, da Eletrobrás.
Mesmo assim, o descaso é claro: foi só no domingo que o Governo Federal decidiu classificar o caso como emergencial, ou seja, durante uma semana a população do Amapá viveu a incerteza do obscurantismo privado. A contratação emergencial valerá apenas por 180 dias (seis meses, mais ou menos, o que, convenhamos, não é muita coisa).
Vamos lá: iniciativas privadas, como o próprio nome supostamente diz, deveria tomar iniciativas que independem do estado, mas não é isso que estamos vendo acontecer e, alguns de nós vivenciando, neste momento tenebroso.
Como se não bastasse o desastre todo, dia 5 de novembro, a tragédia que colapsou a barragem de Mariana (Minas Gerais) – também controlada por empresa privada – completou 5 anos. O desastre ambiental ecoará, segundo ambientalistas, por mais 95 anos, pelo menos.
Coincidentemente, ou não, o desastre de Mariana ocorreu por erro e negligência no monitoramento e manutenção da barragem (lembrando que o estado do Amapá, há um ano dependia de um gerador reserva e um em manutenção para iluminar a vida de quase 751 mil pessoas).
Acredito que saber do descaso do Governo Federal não é novidade, principalmente quando o estado é pequeno (16 cidades, apenas, das quais só 3 não ficaram sem luz) PIB de estados como o Amapá geram 1,7% da economia do Brasil (R$15.480 em um ano).
Mas nada é por acaso, não é mesmo?
A investigação para apurar o incêndio aberta no sábado tem o prazo de 30 dias para esclarecimentos sejam relatados à sociedade, PORÉM
No começo do ano, o Jornal Estado de São Paulo, publicou uma matéria que revela o gasto de dinheiro pago pelo consumidor (conta de luz) à ONS, para bancar serviços que não tem relação alguma com as obrigações da entidade: ao invés de garantir o fornecimento de energia elétrica há milhões de casas, o órgão destinou 400 mil reais gastos em corridas de Uber, viagens a Resorts, comida em restaurantes de alto nível, contratação.
Pois bem, 97% do salário das pessoas que deveriam tomar providências imediatas é composto pela conta de luz e água que nós, população, pagamos. São só 3% dos lucros que vêm diretamente do vínculo da entidade com outras empresas do setor elétrico.
O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) por aqui é controlado por uma entidade brasileira de direto privado sem fins lucrativos, ou seja, são eles os responsáveis por ordenar e controlar todas as operações de instalação e manutenção de geração e transmissão de energia elétrica do sistema interligado, este internacional – basicamente toda a rede de distribuição de energia do país. Quem fiscaliza tudo isso é a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
No começo do ano a própria Aneel pediu a devolução de 13 milhões por entender que a ONS não comprovou a necessidade desses gastos injustificados. No último dia 11 de setembro, a Aneel reduziu a quantia total a ser restituída para 9,4 milhões, após pedido da ONS. O cabo de guerra entre entidades parece estar longe de ter fim.
Todas essas informações foram conseguidas através da Lei de Acesso à Informação (LAI) – a qual todos nós temos direito de acessar, basta que preenchamos o formulário no site para solicitar qualquer informação pública a respeito de qualquer coisa –, e fazem parte do relatório realizado pela superintendência de fiscalização econômica e financeira da Aneel.
Criada em 1998, a ONS, regulamentada em 2004, e está em processo de privatização desde 2018. O processo de privatização de empresas estatais com certeza contribui para implicações investigativas, certo?
Empresas privatizadas tem muito mais recursos para esconder, desviar, adiar e corromper quaisquer processos aos quais sejam submetidos. Se livrar de acusações e processos como este sobre o porquê da quantia excessiva estar acontecendo, pode ser infinitamente mais fácil quando o capital está a favor de qualquer empresa.
O que fazem os instrumentos de estado quando coisas assim acontecem?
Qual é a real necessidade de privatizar setores de instituições operacionais como esta, que fazem a distribuição de energia do país?
O argumento da privatização é de melhorar a eficiência do estado já que, diminuindo a quantidade de coisas que o estado precisa tomar conta, a autonomia e energia do estado seria desviada para setores “que importam mais” - como a preocupação com a saúde da população, órgãos educacionais, entre outros - porém essa argumentação não condiz com a realidade, especialmente no setor elétrico – onde poucas empresas são responsáveis por muitos serviços essenciais e sempre se encontram em lugares nebulosos, longe do olhar do público.
Apesar de aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) já terem transportado seis geradores de energia para Macapá, assim como reforços para distribuição de água na cidade de Santana – segunda maior cidade do estado – todo o prejuízo sofrido pelo povo Amapaense ainda levará muito tempo para ser recuperado.
No sábado, foram concluídos os reparos em um dos transformadores da
subestação – assim, o sistema elétrico do Amapá já voltou a ser interligado ao sistema nacional.
A energia já foi restabelecida na capital e em outras localidades do estado.
Navios da marinha e aviões da força aérea também chegaram a Macapá trazendo combustíveis, profissionais de saúde e alimentos.
É o mínimo, afinal de contas, como disse no começo do texto, o estado do Amapá viveu uma série de catástrofes sociais durante todos esses dias, e por breves momentos, voltou aos tempos medievais.
Pensemos juntos (eu, enquanto moradora de São Paulo, a capital econômica do Brasil): quando vivenciamos um apagão, dentro de algumas horas temos nossa energia restaurada, né?
Há muito tempo não preciso me preocupar em carregar meu celular, me conectar à internet, ver se minha geladeira está funcionando direito, se a comida está devidamente preservada, se meu banho será quentinho, se terei dinheiro para comprar carne, quiçá água.
A maioria de nós trata o apagão como um corriqueiro momento de desligamento da energia geral e, por experiência própria, é possível desfrutar de uma época remota onde o lazer era composto por outros afazeres que não demandam energia elétrica – a qual nenhum de nós, vivos durante os últimos séculos, precisaríamos nos preocupar.
Embora a democratização da eletricidade seja algo extremamente recente, se comparado a outras conquistas sociais, a sociedade se adequa dia após dia ao modo de vida “eletrizado”.
Alguns lugares do Brasil, é comum termos lugares em que a distribuição de energia não seja feita 100% do dia, mas é inacreditável que um evento como este tenha afetado um estado quase inteiro.
Tentando adentrar à realidade alheia, não sabemos do desespero de uma sociedade que começa a transformar tomadas em renda financeira (porque sim, com a falta de eletricidade, algumas pessoas mais ricas puderam comprar geradores à Diesel – vendidos à R$4 mil, com pagamento de dinheiro em espécie, já que nenhum sistema de cartão funciona sem energia, e transformar isso num negócio)
O nível de desespero populacional gera instabilidade emocionais, psíquicas e de relacionamento entre si, afinal o instinto humano de sobrevivência desconhece a “civilidade”, e cai na selvageria: pessoas foram mortas por causa do gerador coletivo, por exemplo; no segundo dia de apagão as cidades foram consumidas cheiro de carne assada, e outras tentativas de armazenamento e racionalização de comida, água e calor.
Lá no Amapá o calor é surreal, e a água secou na maioria das caixas. O capitalismo não perdeu tempo: chegaram a R$100 garrafas d’água, e no desespero, algumas famílias tiveram que cavar poços no quintal de casa.
“Nós temos alguns baldes com água, mas não é própria para consumo, era pra tomar banho, lavar louça, essas coisas. Mas a sede era tanta que nós usamos para beber mesmo. No início, nós fervíamos a água, mas o gás estava acabando, e não tinha como comprar. Depois colocamos água sanitária, mas eu sentia muita dor no estômago, então não dava para beber direito, era só no golezinho para não desidratar”, conta Ana Barros, 25 anos.
Nenhuma população contemporânea tem o conhecimento necessário sobre o que fazer em situações como esta.
Prezar pela população brasileira cada vez mais tem se mostrado necessário em frente ao atual governo. Ao meu ver, a única saída possível é a união coletiva, independente do estado e independente das privatizações.
Se você quiser saber como ajudar, siga @amapasolidario, projeto de rede de voluntários do Amapá que está recebendo doações, junto com a iniciativa do Movimento 342.
Todos os recursos arrecadados estão sendo destinados ao fundo emergencial do Amapá Solidário.
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