\\ CRÔNICAS
Andava bêbada e destemida, o mundo pegava fogo, havia esquecido uma coisa em casa, minha viagem girou em volta disso, foi um verdadeiro inferno em Santos — que ironia!
Por Virginia Guterman, Especial para Frente & Versos
Melancolia, Edvard Munch
Protetor solar, canga, chinelos de borracha, toalhas brancas, viseira e… botas de inverno. Pensei, “se elas vieram, mesmo que por engano, algo ficou para trás”. Demorei para perceber. Só lá pelas tantas, no segundo dia, percebi que aquela “coisa” fora esquecida, talvez em cima da mesa da cozinha do apartamento. E estava eu, em Santos, no apartamento de frente para o mar lamentando ter esquecido as coisas.
Lembro-me bem deste dia. Collor havia confiscado a poupança. Zélia foi a Geni, com razão, todo mundo ficou puto. Teve gente que se jogou das alturas. Uma prima enfartou. Morava no Rio. Conta a tia Paula, naquele dia, no hospital, o número de infartados era grande, copiosamente maior do que em dias normais. Tinha a ver com dinheiro, só podia.
Mas meu problema não era dinheiro. Não era o Collor. Não era a prima que, sem maldades, de infartada, hoje está em pleno vigor físico. É multiatleta – talvez essa palavra se escreva separada. Eu demoro muito para subir escadas, pareço uma velha asmática. Ela, com coração forte, não se deixou levar pelo susto da sua grana tomada pelo governo. Se virou nos trinta. Abriu uma pequena loja de bolos, chamada Cake Shop, uma portinha. Hoje a loja não existe mais, mas os Cakes a apresentaram a um marido rico. Meu problema era a “coisa”.
Coincidentemente, no dia em que havia esquecido a coisa em casa e o Brasil quebrou, pensei no marido da prima, hoje rica. Ele tinha me dado a coisa. “Guarde muito bem”. Que coisa! Pensava eu “Por quê?! Por quê?!”. Os dias em Santos, valha-me o trocadilho, foram um verdadeiro inferno. De santo, nem o Santo Antônio de barro foi poupado. Espatifou-se em mil pedaços. Havíamos rompidos, eu e o (hoje) marido da minha prima.
Pensava na coisa. Materializava a coisa. Sonhava com a coisa. Escrevia sobre a coisa. Desenhava a coisa. Sentia o cheiro da coisa. Apalpava, imaginativamente, a coisa. Escutava o som da coisa, ou uma voz estranha me falava “Coisa, coisa, coisa”. A tv ficava ligada. Todo mundo puto indo para a rua. E eu em Santos, preocupada com a coisa. Alguém vai pegar!!! Pensava eu, usando rinossoro e na banheira.
Não aguentei. No quinto dia voltei para São Paulo. Nem tanto pela coisa, o dinheiro havia acabado. Estacionei o corsa prata na porta do edifício Isabel. Cumprimentei o seu Juca, o porteiro, voei para o apartamento. E, quis o destino, a chave havia ficado na escrivaninha do apartamento de Santos. Liguei para o chaveiro, ele demorou, demorou, demorou. Entrei.
Olhei rapidamente todo o apartamento como se fosse uma zona de guerra. Na mesa, nada da coisa. Revirei a dispensa. Armários. Gavetas, pequenos esconderijos. Nada. Nada da coisa. Fiz um plano de guerra. Só se falava do Collor, do dinheiro, o Brasil pegava fogo. E eu, cadê, cadê, cadê. Até que, assim sem mais, lembrei-me, havia tomado toda a Amarula ganhada do meu futuro parente que tampouco sei parentesco. Vinha nela um bilhete de amor, dentro do bilhete, uma combinação de números. Lembrei na hora: era a senha para retirar uma assinatura de um ano grátis da tv a cabo. Perdi no caminho pra Santos (tudo).
Era cool se embriagar e ser durona. Liamos horóscopos e assistíamos filmes caretas de paixões ávidas. A vida é engraçada. Não existia esse negócio de coach. Coach era a branquinha, uma amiga de roupão, esmaltes Risquê e um álbum do Tears for fears. A garrafa estava vazia com flores murchas e água. Hoje me sinto uma vadia sem coração. Mas ok. Bebi, fui feliz, não perdi dinheiro, não ganhei. Liguei na operadora da televisão pedindo a senha — era um saco ter que fazer isso, por que mesmo eu havia anotado ali, naquele bilhete? Comprei outra Amarula, um chaveiro legal e fiz uma tatoo (que depois removi). Ou seja, ele não é o pai dos meus filhos, a razão dos meus chifres, tampouco o sol da minha praia.
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