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Por que a gente não deu certo?

\\ INFINITUDES

"Gostaria de ligar para todas essas pessoas e desejar boa sorte, e dizer adeus, e então ia me sentir bem e elas também." (Nick Hornby, Alta Fidelidade)

Por Isabela Nunes, colaboração para Frentes Versos


Imagem: Royalty free.


As madrugadas normalmente são o momento do dia mais propício ao surgimento de ideias questionáveis. Arrisco dizer, até, que as ideias-de-madrugada caberiam tranquilamente na mesma caixa mental que as ideias-de-bêbado ou as ideias-chapadas, notadamente famosas pelo seu poder encantatório surpreendentemente potente para a conexão frágil que têm com o mundo real. Nesses momentos – de noite, de álcool, de drogas – a mente fica mais vulnerável, mais receptiva aos pensamentos sorrateiros que nos golpeiam do nada e na mesma tacada nos convencem de que são absolutamente geniais. Antes de sequer nos darmos conta, estamos a dizer coisas como puxa, como é que não pensei nisso antes?, e a repetir mentalmente a palavra genial genial genial de maneira só um pouco menos obsessiva que Sméagol e seu canto de precioso.


A última ideia mirabolante que me veio lá pelas três da manhã foi tão ruim que me pergunto, mesmo sabendo do efeito inebriante das madrugadas, como é que pude sequer considerá-la. Eu estava deitada, tranquila, olhos fechados, tentando lutar contra a insônia e finalmente ceder ao alívio do sono. E aí, de repente, justo quando as pálpebras começavam a pesar, ela me vem como um soco na cara: e se eu perguntasse a todos os meus ex-amores por que a gente não deu certo? Pronto: nocaute. Uma ideia como aquela seria pouquíssimo proveitosa para mim enquanto pessoa – além de doida, seria doída, com certeza – mas, nossa, como daria um texto incrível. (Talvez, bem talvez, eu seja o tipo de pessoa que vai atrás de experiências ruins só para poder escrever sobre elas depois. Talvez – repito, talvez, hipoteticamente, quem sabe, quiçá – isso seja mais consciente do que eu gostaria de pensar. Mas é só talvez.) Como é que não tinha pensado nisso antes? Todos eles – os ex-amores – sempre estiveram bem ao meu alcance, a uma única mensagem de distância. Eu, tola, me estatelando em bloqueios criativos e falta de inspiração, e por todo esse tempo aquele material poético dando sopa, apenas esperando uma madrugada de insônia para se revelar. Ia ser o melhor texto que eu já escrevera. Ou, no mínimo, seria genial genial genial.


Mas então a manhã chega, e com ela os baldes de água fria para os sonhos da noite. Depois da semimorte que é o sono, nenhuma ideia-de-madrugada sobrevive até a manhã – o que talvez seja algo bom, considerando seu potencial destrutivo. À luz do dia, as possibilidades infinitas das ideias geniais começam a parecer menos possíveis e menos infinitas, além de um tanto mais dificinhas de se concretizarem na prática. A genialidade da coisa começa a se esvair, escorrendo pelos dedos, fugaz como é toda genialidade de madrugada, e a ideia se revela como é: péssima, um pouquinho bizarra e cheia de obstáculos.


Obstáculo um: nem todos os ex-amores estariam abertos a esse tipo de discussão ou teriam algo a me dizer. Dois: com alguns deles eu nem poderia falar, porque o perigo de reabrir feridas antigas (tá, tudo bem, nem tão antigas assim) era maior do que eu estava disposta a arriscar pelo bem supremo da arte. Três: é meio coisa de gente maluca você chegar, do nada, e perguntar: oi, tudo bem, eu sei que fazem três anos que a gente não se fala, mas me diz aqui, por que é que a gente não deu certo? Quatro, que na verdade é meio que extensão do um e do três: eu estaria mexendo com todas as presunções que criei na minha cabeça de como essas pessoas entendem o que tivemos. Porque, bem, eu sei que eu pensei sobre elas durante esses anos e teria uma opinião ou duas para dar caso alguém me viesse com uma pergunta repentina dessas, mas e elas? Também remoem o que aconteceu? Têm ideias repentinas na madrugada envolvendo relacionamentos antigos? Pensam


obsessivamente sobre por que não são capazes de ficar com quem quer que seja por muito tempo? Sequer se lembram de mim ou se importam comigo o suficiente para pensar em uma resposta sincera?

Obstáculos demais, é claro. E riscos demais para meu coração que nas madrugadas acha que pode encarar o mundo inteiro, mas é na verdade um tiquinho sensível quando nasce o dia. Obviamente, joguei a ideia fora no lixo mental que serve de limbo para todos os pensamentos que eu desejaria não ter tido. Mas eles são cruéis, esses pensamentozinhos. Têm um jeito de permanecer rondando, à espreita, esperando o melhor momento de dar o bote. Com esse, não foi diferente. Ainda assim tentei ignorá-lo, o máximo que pude. Pulei então para a minha distração preferida, a que sempre emudece meu Eu agoniado e me oferece alívio: livros.


Por um acaso do destino, mais tarde nessa mesma semana um amigo me indicou Alta Fidelidade, do Nick Hornby, o que foi quase como o universo esfregando na minha cara o negócio do por-que-a-gente-não-deu-certo. Supostamente, esse livro era um novo clássico para os homens eternamente adolescentes; o grande hino da masculinidade dilacerada entre Criança Interior e Orgulho de Ser Homem do Século XXI. Chick-lit para homens, me prometeram (atenção para o nome horrível que isso tem: dude-lit). Hornby, roteirista de filmes como Brooklyn (2015) e Livre (2014), era um nome que eu nunca ouvira antes, nem na literatura nem no cinema, e pelo qual – confesso – eu provavelmente não me interessaria numa situação normal. Mas o amigo vendeu bem o peixe: a história do livro me pareceu interessantíssima. Era sobre esse cara, Rob, que acabou de terminar com a namorada e não está nada feliz com isso. Egocêntrico, obcecado, meio machista e babaca, ele começa uma longa jornada pelos relacionamentos falidos do passado, do primeiro ao último, pelos quais passou os últimos anos todos se martirizando. (Soa familiar?). Não acho que ele tenha aprendido muito com essa jornada interna, mas é divertido lê-la mesmo assim e, em mais momentos do que tinha imaginado, Hornby, sincero, mostra verdades que não gostamos de admitir ou pensamentos que nunca mesmo admitiríamos que cultivamos com seriedade, tipo esse aqui:


Me parece que, se a gente coloca a música (e os livros, provavelmente, assim como filmes e peças e qualquer coisa que provoque sentimentos) no centro da existência, não consegue ter uma vida amorosa resolvida, pensar nela como um produto acabado. Tem que ficar cutucando pra mantê-la viva e agitada, cutucando e desenredando até que ela desmorone e a gente seja compelido a começar tudo de novo.


Um dos dilemas de ser sincero – e que Hornby provavelmente enfrentou para escrever esse livro – é, naturalmente, conciliar a contradição entre o fato de sermos indivíduos narcisisticamente absorvidos por esse lance de sermos indivíduos e nossa consciência agoniante de que tem algo de bizarramente errado em todo esse buraco-negro-do-Eu que nos suga mais e mais para dentro dele, obscurecendo tudo que não seja nós mesmos. O que descobri lendo a jornada interna de Rob é que, com um pouco de atenção, é possível ver o quanto o horizonte de eventos desse espetáculo de desastres gravitacionais inclui mais do que podemos ver a olho nu. A culpa da vida amorosa desmoronante talvez seja das músicas e dos livros e dos filmes que nos deixam com aquele tipo de fome desenfreada de fantasia, fome de viver uma aventura como aquela que lemos, um amor como aquele que ouvimos e que, obviamente, ultrapassa em muito a coisa real. Talvez também possamos colocar na conta da arte nossa obsessão por, como diz Rob, sermos viciados por oscilar entre apenas dois estados de ser, o superinfeliz e desesperado ou o superapaixonadamente feliz, rejeitando qualquer mínima estabilidade, especialmente em relacionamentos. Mas talvez – hipoteticamente, quem sabe, quiçá – a responsabilidade seja menos dos livros e mais de nós mesmos e da nossa falta de habilidade em algo que soa terrivelmente brega e parece não requerer nenhum talento além de atenção consciente: escolher.


Alta Fidelidade foi popular a ponto de ser adaptado duas vezes para a televisão (um filme de 2000 com John Cusack e uma série desse ano com a Zoe Kravitz) e eu acho que foi assim por ser uma história que – como me prometeram – conversa muito intimamente com essa geração que é eternamente adolescente, independente de preferir chick-lit ou dude-lit, e que paradoxalmente tem todos esses problemas de pessoas-que-têm-crises-de-meia-idade-aos-vinte-anos pipocando na cabeça. Uma consequência direta de deixar a parte eternamente infantil de si governar o todo do Eu é não saber fazer escolhas que não estejam de acordo com os impulsos internos; é não saber que decidir comer verduras e arroz com feijão é, a longo prazo, mais inteligente que obedecer ao desejo voraz e imediato de atacar o pote de doces em todas as refeições do dia. (Paul Thomas Anderson disse em alguma entrevista que dá pra descobrir muito sobre uma pessoa pelo que ela come no café da manhã. Eu, naturalmente, ataco o pote de doces). Satisfazer toda vontade interna pode parecer, num primeiro relance, um tipo de liberdade sem limites e restrições, caminhos abertos para fazer o que quiser, hedonismo eterno. Mas eu tenho quase certeza de que é, na verdade, alimentar aquele buraco-negro-do-Eu que suga qualquer liberdade antes de você sequer poder dizer as palavras “eu quero”. E ter que ficar cutucando a vida amorosa para mantê-la agitada, cutucando e desenredando, como diz Rob, é nada mais que obedecer constantemente ao desejo voraz, imediato e infantil de doce. No momento em que a coisa fica mais pro lado do arroz-com-feijão, é hora de dar no pé. Porque há essa coceira, sempre presente, sempre viva, dizendo para fugir e achar um pouco de açúcar em algum outro lugar.


O paradoxo evidente disso tudo é que, bem, em última instância, a fome de açúcar é, como eu disse lá em cima, fome desenfreada de fantasia. (Fantasia: substantivo feminino que quer dizer coisa que não tem existência real, mas apenas ideal ou ficcional. Ênfase no ficcional). É isso que Rob percebe quando faz o que eu não fiz e vai atrás de cada um dos relacionamentos falidos para descobrir o que houve de errado: ele passou anos remoendo fantasias. Não há uma grande epifania ou um grande momento em que ele se dá conta do próprio narcisismo, mas Rob entende isso, ao menos. “Como foi que não percebi essas coisas ao longo dos anos?”, ele se pergunta. Eu acho que a resposta a essa pergunta dele pode ser dividida em duas: a) é difícil sair da própria cabeça quando pensamos nesse assunto e b) é difícil porque grande parte das idealizações que fazemos são nossas inseguranças falando, ou nossos desejos mais íntimos, ou os medos mais tenebrosos. Quando Rob pensava em Charlie, a ex-namorada elevada ao patamar de quase-deusa, não era bem nela que ele estava pensando, mas no seu próprio sentimento de inadequação e na esperança de que ela talvez, quem sabe, quiçá, guardasse algum segredo do universo que tornaria tudo mais fácil se ele apenas conseguisse ficar por perto o bastante para decifrá-lo. A Charlie imaginária era tudo que ele não era: parecia sempre saber o que estava fazendo ou o que queria fazer; era descolada, legal, inteligente, bem-sucedida.


A Charlie de verdade, do mundo real, talvez não fosse nem um pouco parecida com a fantasia de Rob, e mesmo ele se dá conta disso quando se questiona: “Como foi que consegui transformá-la na resposta para todos os problemas do mundo?”. (Eu respondo, Rob: você queria o pote de doces. A resposta fácil. O sentir-se-bem que era estar com a Charlie, porque naquele microssegundo em que aquela pessoa legal e interessante voltava os olhos para você, você também se sentia um pouquinhozinho legal e interessante e era um alívio se sentir certo. Você queria que alguém pudesse ser a resposta para todos os problemas do mundo porque você não tem a mínima ideia de como resolvê-los ou pensá-los por conta própria. Você cedia sua percepção de si mesmo a ela, e suas soluções-de-problemas, e seus medos, e sua vontade de ser interessante e legal. É assim que você conseguiu essa mini-apoteose, Rob). Mas no fundo nem importava que a Charlie de verdade não fosse tudo aquilo, porque a Charlie imaginária era. E ela era tão melhor que qualquer coisa que Rob pudesse encontrar no mundo real, tão mais viva, tão mais perfeita, tão incrivelmente próxima de quem ele se convencera de que queria ser.


Hornby não escreveu isso, mas eu poderia apostar que os devaneios de Rob eram insanamente mais divertidos que os momentos reais e concretos que ele passava com a Charlie. Eu poderia apostar porque, bem, quem nunca se sentiu assim? Quantas vezes não rodamos cenários inventados, bons e ruins, até torná-los tão familiares que borram as linhas do imaginário e ganham concretude? Quantas vezes não desenrolamos na cabeça toda uma história fantasiada, ficcional, que vivemos sozinhos dentro de nós mesmos? Quantas vezes não mastigamos as inseguranças e medos e anseios e impulsos internos até decidirmos direcioná-los a algo com corpo, nome e endereço? Às vezes esquecemos, como Rob, que o inventado pode de repente criar pernas e sair andando por aí, tão vivo quanto eu e você. O inventado pode de repente se tornar mais real que o real. E o problema, então, é que ele de repente tem uma vida-própria-de-carne-e-osso bem sólida mas continua só existindo para nós, dentro do nosso buraco-negro-do-Eu e daquele nosso lugarzinho oco que se sente infinito quando ouve músicas e lê livros e vê filmes porque pode imaginar o próprio coração expandindo e expandindo e expandindo. Devaneios e fantasias sempre foram diversão para uma pessoa só. Não têm lugar em relacionamentos de gente que não quer ser viciada em açúcar. Charlie provavelmente não tinha a mais remota ideia do que Rob vivera com-ela-mas-na-verdade-consigo-mesmo na própria cabeça.


E aqui chegamos, finalmente, na conclusão disso tudo, na ideia-de-madrugada fracassada, no por-que-a-gente-não-deu-certo, no grande-momento-revelador-que-dá-um-sentido-a-todo-o-falatório. Porque Rob representa muitos de nós, eu acho, ainda que não gostemos de encarar o fato de que somos uma grande esponja solipsista e babaca. E eu, como tantos, também vivi quase todos os meus relacionamentos sozinha, reclusa em minha cabeça, rodando cenários. Também voltei a eles de novo e de novo, como uma criança com fome de doce incontrolável, em busca de um momento mágico com a minha Charlie mágica que magicamente faria eu me sentir bem e certa e sem nenhum problema à vista. Também deixei com que meu inventado criasse pernas e saísse andando tanto por aí que, juro por Deus, às vezes mal sei que memórias aconteceram de verdade e quais eu criei. Mal sei se todas aquelas pessoas com quem queria falar são minimamente parecidas com quem eu me convenci de que são.


Alta Fidelidade foi uma grande piada do universo com a minha cara porque, lendo a história de Rob, descobri que não preciso perguntar a ninguém por que a gente não deu certo. O obstáculo cinco, o maior de todos, à minha péssima, doida e doída ideia-de-madrugada é que não preciso ir atrás dos meus relacionamentos falidos em busca de respostas porque o problema está aqui dentro, junto comigo e os potes de doce e as fantasias. Conversas imaginárias dariam um texto mais desonesto, talvez, mas me serviriam tão bem – eu acho que até melhor – que a coisa real. Porque o monstro que enfrento é interno. É meu. É doce. Eu não sei responder, ainda, por que a gente não deu certo. Pode ter sido eu ou pode ter sido os demônios internos da outra pessoa ou talvez seja que nossos demônios se emaranharam em uma competição de dança bizarra pra ver quem estragava tudo primeiro e aí mandaram a coisa toda pro espaço. Eu não sei mesmo. Mas sei, ao menos, que nessa semana eu literalmente joguei fora o pote de açúcar. Porque estou aberta a fazer escolhas boas, e conscientes, e a só, sei lá, prestar atenção. Me tornar mais humana, mais empática, mais no controle de mim mesma. Tentar sair do buraco-negro-do-Eu; do vício ilusório pelo amor dos livros, e das músicas, e dos filmes; da apoteose inconsciente que transforma cada ex-amor em deus-que-guarda-respostas. Estou disposta a abrir os olhos e ver o que há na minha frente: a vida que me escorre pelos dedos enquanto sonho acordada com fantasias agridoces e impossíveis.


A última ideia mirabolante que me veio lá pelas três da manhã veio em resposta ao meu desejo crise-de-meia-idade-aos-vinte-anos, pipocando já há algum tempo, de revistar meu breve passado para talvez, quem sabe, quiçá, escrever um presente diferente. Ela veio porque eu sinceramente gostaria de ligar para todas essas pessoas e desejar boa sorte, e finalmente dizer adeus. E finalmente me sentir livre para escolher. E finalmente ter um começo que não seja a continuação de um fim. E finalmente aceitar que ninguém tem as respostas que quero. E finalmente entender que ninguém merece nem a honra nem o peso de ser deus, e nem a honra nem o peso de ser sacerdotisa devota. (Então boa sorte, eu acho, e adeus).


Pela primeira vez em muito tempo, sinto uma esperança quente, aguda, esfomeada, de começo. Um começo de verdade, que não seja o do relógio batendo meia-noite para reiniciar a mesma jornada de novo. Um começo que implique em atenção consciente e decisões conscientes e um poder real de escolher. Um começo sem preocupações idiotas tipo por-que-a-gente-não-deu-certo; sem Charlies e apoteoses e fugas desesperadas; sem ideias-de-madrugada que são sempre sobre remoer o passado. Um começo sem peso, sem medo, sem algemas.


A novíssima ideia-de-madrugada que me vem, e que espero muito mesmo que dure até a manhã, é só isso: um começo.


Livre de açúcar, quem sabe.

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