\\ CRÔNICAS
Créditos foto: Matheus Lopes Quirino
Caso queira entender do que se trata essa seção de"PEDANTISMO", sugiro que entre aqui.
Da mesma forma, caso queira saber quem é José, aconselho a todos para começar por aqui
O segundo bom-dia inerte entre flores e paisagens paradisíacas da tela imunda de iniciar já indicava a segunda jornada do dia: café frio, biscoitos mofados de ontem, prato largado com os restos de anteontem. Sobre o painel de avisos desregular, afixado na pressa com cola industrial e orgulho autossômico, um lembrete que já naquele ponto já viraria um mantra matinal a ser repetido ininterruptamente ao longo da jornada e — por quê, não? — no começo da madrugada que misturava trabalho acumulado com pornô barato, vídeos de pessoas reagindo a vídeos de outras pessoas, e mil e uma outras dicas para Ulysses numa tacada só — essa que tinha que ver: “Hoje é um dia feliz”
Num movimento brusco de walking dead em busca da última gota de café na xícara quase seca, esbarro no vidro do alaranjado e faço do meu tapete, da minha camisa, e de minhas últimas meias brancas o próximo grande happening da bienal ou a novíssima obra de Marina Abramović, sobre os passos bêbados de um jornalista em ambiente home office. (Hoje é um dia feliz) Cara, porque fui teimar em frilar em inglês mesmo? O anglicismo elitista e o engatilhar arrastado de peças publicitárias chiques, de marca forte em algum país lá fora, é realmente algo arrebatador: aqui eles precisaram juntar vinte adjetivos engenhosos, cento e trinta substantivos descolados e novecentos e noventa e nove bordões entusiasmados ou frases feitas sebosas e encrespadas, para resumir em duas palavras a grande importância desses em nossas vidas: Porra nenhuma.
A pequena manhã processe normal, até que decido dar um banho café-gelado no computador e no movimento brusco do levantar da cadeira — hoje é um dia feliz —, senti a hérnia estalar de dor e as pernas bambearem feito gelatina de morango. De súbito, num espetáculo de trinta atos e dois e vinte e cinco apoteoses, como só Nelson Rodrigues poderia explicar em seu texto teatral, eu decretava a falência total do corpo, ainda inerte, grudado na cadeira à frente do computador ligado e este, sorridente, ao me dar bom-dia pela quinta vez seguida (hoje é um dia feliz) — acho que nunca tive tanta vontade de pegar meu laptop e jogá-lo contra os coqueiros da janela.
O relógio gravava cinco para nove e eu precisava, magicamente, arrumar minha postura, arrumar a bagunça da desventura semissonâmbula e ligar a porra do Skype para ter mais uma daquelas reuniões que muito bem caberiam num e-mail de negócios, ou num simples zap-zap entre amigos. Algo do tipo: “ô, zé me entrega teus papéis até às 11h?”, zé com toda e qualquer calma impessoal do mundo, mergulhado por memes e stickers do Zeca Pagodinho mandaria na lata: “ok, relatórios e papéis até às 11h”. O mundo se resolveria de maneira impecável: as ferras, os homens e os políticos andariam juntos em eufonia, cantando os lírios de uma vida harmoniosa e confortável sem mazelas; nunca faltariam pão, carne e M&Ms nas casas e bolsos de cada um, sendo possível, ainda, trocar o pão por mais M&Ms e, por fim — mas nem por isso, menos importante —, a ressaca moral e as obrigações matinais de olhar por vinte e cinco minutos pra cara do chefe puto com a produtividade baixa ou com as planilhas de custos no rubro-vermelho seriam coisas do passado, num mundo onde só o companheirismo a camaradagem valeriam a pena — quem me dera viver dentro do The Sims.
Ao cabo de mais sessão de CastleVania com o vampirão-chefe tomando um cacete da arquimaga-do-érre-agá, o sitcom encerra como começa: votos de paz, uma voluptuosa gritaria no fundo, e longo silêncio de cobras & lagartos como manda o grande script da vida. Mas como uma vez disseram e não me lembro, “viver não cabe dentro de uma caixa de papelão”, ou “uma caixa de papelão não cabe dentro da vida”, ou “não dá pra caber a vida numa caixa de papelão” — embora meu cachorro sempre me lembre do contrário para qualquer um dos trípticos à escolha do leitor—, me virei pra janela que dá pro meu quarto: puxei um pequeno copo de vinho que mantenho guardado entre os livros de gramática, despejei o último suspeito duma noite de rosê & Bardot (a Brigitte, claro!) e me deliciei com o resplandecer do meio-dia, desde minha janela, com meu copo e meu silêncio em mãos: hoje é um dia feliz.
Floresço desde o parapeito
Marulha-se o vento
No encontro ágil conosco
Arrulha silêncio
José Ribeiro Perreira
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