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Encantadores - André Vieira

\\ CRÔNICAS

Berthe Morisot au bouquet de violettes, Édouard Manet


Caso queira entender do que se trata essa seção de"PEDANTISMO", sugiro que entre aqui.

Outro dia ia ao mercado; precisavam de pó de café e outras de bebidas açucaradas para adoçar um dia reservado à família e ao aniversário da única tia do meu lado da família, Teresa. E eu, primogênito, fortudo, cabeludo da família tinha de fazer essa forcinha pra irmã do meu pai, cunhada de minha mãe e filha de vovô, pois afinal, não era todo dia que se fazia strogonoff de carne, se comprava bolo de chocolate e se convivia com espírito íntimo da família distante, ora pela rotina furtiva que nos regelava a ligações escassas de noites insones, ora pelas incongruências das personalidades, os sorrisos forçados de imemoriais encontros, a gentileza aguada de café requintado sobre o pires da memória e, quem sabe, a própria vontade afoita, para não dizer corajosa, de olhar para aquele monte de estranhos conhecidos e dizer em alto e bom som: “bom almoço para vocês, senhores, senhoras, passem bem”.

De volta à seção de congelados, uma faísca de felicidade clandestina me aparece no rol de notificações desanimadoras e por entre o aviso de já ter estourado pela quinta vez os dados móveis reservados àquele mês (Tim, quero que saiba que eu odeio mais do que chocolate sem leite): “ou, deixa eu fala’ uma coisa procê, eu sei que a gente se conheceu nessa loucura de aplicativos (e na real eu te achei bem gatinho, rs), mas nesse mês e tanto que a gnt não se falo’, eu meio que me apaixonei por outro alguém e enterrei de vez qual coisa que nós podíamos ter daqui pra frente, tá bom?”.

Não bastasse a pequena labareda que incendiava meu pequeno orgulho masculino e agonizava meu ego inflado, querendo se meter por entre os enlatados de tomate e os requintados de banha e gordura trans, meu algoz de dedos tubérculos, nariz de batata, cabelo de vagem e voz trêmula de descascadora de batatas-baroas foi impiedoso no ato público de execução privada: ”Tipo, eu gostei pra caraio de você nas nossas conversa’ e da forma como tu me trata, maaas se a gnt continuar a bater papo e ter uma relação vai ser na amizade, mesmo! Beleza, meu?”

Olhos em lágrimas, estômago revirado, coração a ritmo miocárdio (não sei ao certo qual dos sintomas veio primeiro), pressinto que a machadada final, aquela que fará rolar minha cabeça por ruas imundas e poças opacas para depois depositá-la num cesto de mentes arruinadas, devastadas e espoliadas de meu carrasco agiota, como todas as outras que vieram antes da minha, mas por intervenção divina, ou dores de corno não consumado — afinal, saímos uma vez, e foi incrivelmente ruim —, arrematado um pedido de súplica, disfarçado de indiferença e cinismo: “Hahaha, mas eu já tinha desencanado da “gente” (e pior que cravei assim mesmo, com aspas; puta que me pariu.) há muito tempo! Só tinha te mandado a mensagem hj, pq achei que a gnt poderia jogar um papo fora só isso”

Com o orgulho ainda torcido, a boca boquiaberta, ainda seca e os olhos ainda mareados (não necessariamente nesta ordem), emendei o castigo eterno que Zeus submeteu Prometeus, que até hoje se lamenta por der dado uma miserável centelha de nada, pros homens e mulheres embrazarem no churrasco de gabaritos e alces de 2380 a.C: “Olha, como a gnt é mais amigo agora, eu podia te mandar meus hai-cai diários. Não veja isso como uma tentativa de reatar o laço ou d’a gnt ter um lance mais sério.... É porque eu mando pros meus mais próximos um minipoeminha todo dia e eles me dão dicas, toques e me descem o cacete (quando me entendem, claro). Tu acha que você gostaria de participar?”.

Um sonoro “okey” imunda a sala opaca de bate-papo no aplicativo de mensageria. Mesmo vocábulo anglófono, de ecos mundiais, ressonaria quinze horas depois na hora do café: “creio que tenho mais uma grande fã”, enquanto entorno uma xícara fumegante de café azedo.

PS: gostaria que não fosse, mas essa estória é real... Como todas as boas estórias.


Encantadores


Mensagens de texto.

Palavras entre ciladas.

Coragem nos beiços.


André Vieira



(Créditos foto capa: Le petit déjeuner, R.CHAM)

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