\\ CRÔNICAS
Berthe Morisot au bouquet de violettes, Édouard Manet
Caso queira entender do que se trata essa seção de"PEDANTISMO", sugiro que entre aqui.
Outro dia ia ao mercado; precisavam de pó de café e outras de bebidas açucaradas para adoçar um dia reservado à família e ao aniversário da única tia do meu lado da família, Teresa. E eu, primogênito, fortudo, cabeludo da família tinha de fazer essa forcinha pra irmã do meu pai, cunhada de minha mãe e filha de vovô, pois afinal, não era todo dia que se fazia strogonoff de carne, se comprava bolo de chocolate e se convivia com espírito íntimo da família distante, ora pela rotina furtiva que nos regelava a ligações escassas de noites insones, ora pelas incongruências das personalidades, os sorrisos forçados de imemoriais encontros, a gentileza aguada de café requintado sobre o pires da memória e, quem sabe, a própria vontade afoita, para não dizer corajosa, de olhar para aquele monte de estranhos conhecidos e dizer em alto e bom som: “bom almoço para vocês, senhores, senhoras, passem bem”.
De volta à seção de congelados, uma faísca de felicidade clandestina me aparece no rol de notificações desanimadoras e por entre o aviso de já ter estourado pela quinta vez os dados móveis reservados àquele mês (Tim, quero que saiba que eu odeio mais do que chocolate sem leite): “ou, deixa eu fala’ uma coisa procê, eu sei que a gente se conheceu nessa loucura de aplicativos (e na real eu te achei bem gatinho, rs), mas nesse mês e tanto que a gnt não se falo’, eu meio que me apaixonei por outro alguém e enterrei de vez qual coisa que nós podíamos ter daqui pra frente, tá bom?”.
Não bastasse a pequena labareda que incendiava meu pequeno orgulho masculino e agonizava meu ego inflado, querendo se meter por entre os enlatados de tomate e os requintados de banha e gordura trans, meu algoz de dedos tubérculos, nariz de batata, cabelo de vagem e voz trêmula de descascadora de batatas-baroas foi impiedoso no ato público de execução privada: ”Tipo, eu gostei pra caraio de você nas nossas conversa’ e da forma como tu me trata, maaas se a gnt continuar a bater papo e ter uma relação vai ser na amizade, mesmo! Beleza, meu?”
Olhos em lágrimas, estômago revirado, coração a ritmo miocárdio (não sei ao certo qual dos sintomas veio primeiro), pressinto que a machadada final, aquela que fará rolar minha cabeça por ruas imundas e poças opacas para depois depositá-la num cesto de mentes arruinadas, devastadas e espoliadas de meu carrasco agiota, como todas as outras que vieram antes da minha, mas por intervenção divina, ou dores de corno não consumado — afinal, saímos uma vez, e foi incrivelmente ruim —, arrematado um pedido de súplica, disfarçado de indiferença e cinismo: “Hahaha, mas eu já tinha desencanado da “gente” (e pior que cravei assim mesmo, com aspas; puta que me pariu.) há muito tempo! Só tinha te mandado a mensagem hj, pq achei que a gnt poderia jogar um papo fora só isso”
Com o orgulho ainda torcido, a boca boquiaberta, ainda seca e os olhos ainda mareados (não necessariamente nesta ordem), emendei o castigo eterno que Zeus submeteu Prometeus, que até hoje se lamenta por der dado uma miserável centelha de nada, pros homens e mulheres embrazarem no churrasco de gabaritos e alces de 2380 a.C: “Olha, como a gnt é mais amigo agora, eu podia te mandar meus hai-cai diários. Não veja isso como uma tentativa de reatar o laço ou d’a gnt ter um lance mais sério.... É porque eu mando pros meus mais próximos um minipoeminha todo dia e eles me dão dicas, toques e me descem o cacete (quando me entendem, claro). Tu acha que você gostaria de participar?”.
Um sonoro “okey” imunda a sala opaca de bate-papo no aplicativo de mensageria. Mesmo vocábulo anglófono, de ecos mundiais, ressonaria quinze horas depois na hora do café: “creio que tenho mais uma grande fã”, enquanto entorno uma xícara fumegante de café azedo.
PS: gostaria que não fosse, mas essa estória é real... Como todas as boas estórias.
Encantadores
Mensagens de texto.
Palavras entre ciladas.
Coragem nos beiços.
André Vieira
(Créditos foto capa: Le petit déjeuner, R.CHAM)
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