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Foto do escritorAndré Vieira

Espiral bimotor - Egberto Augusto Goght

\\ CRÔNICAS

Éternel recommencement, Jan Steen


Caso queira entender do que se trata essa seção de"PEDANTISMO", sugiro que entre aqui.


Os raios de sol gotejavam sobre o café ainda escurecido pelos prazeres etílicos e as provas idílicas. Habitués maltrapidos, meretrizes ardilosas, bêbados alegres e cigarras ciganas animavam o ambiente nevoado desde os pigas paraguaios mais insólitos até os cigarros cubanos mais malcheirosos. Nos bastidores dum boliche mequetrefe, que faria da casa da mãe joana um prostíbulo luxo do Méier ou um pomposo harém dum califa com vasto império ainda a deslumbrar as terras que tomam a vista de seus súditos, conheci o figurão, o cara, o tal, que derrubaria as paredes daquela espelunca, furtaria a atenção estática dada aos narguilés elétricos e cigarros eletrônicos e arrebataria, como conta de luz no fim-de-mês, os corações impuros pela esbórnia de pizzas margherita com catupiry e ovos cor-de-rosa servido com azeitonas azeitadas.

Tomando o banquinho, barrigudo beiçudo de 1,57 m, barba por fazer, surdo duma orelha, argola d’ouro n’outra, crespudo careca, vestido por um sobretudo vampiresco e uma gravata borboleta rubra-sangue pôs-se logo a bostejar no pé da orelha dos andarilhos solitários da noite, que não tendo para si nada alguém da própria consciência de seus fracassos e as promessas iludidas pelo gin & tônica e a cerveja barata que ladeava aquele inferno na terra aceitavam aquele véu de palavras estreladas como o próprio fel que lhes curtia o fígado:

— Respeitável público! Senhores, Senhoras e Senhoritas! Deixem-me apresentar a vocês, sou Egberto Goght! Mas podem me chamar de Betinho da cartola! Sou-lhes todo seu: me falem, me rasguem, me despedacem, me falem!!! Só não me parem quando o show estiver acontecendo. Não há coisa mais frustrada para batuta das cartolas e ás das mágicas ilusórias do que ser interrompido no meio do ato! Assim, sem mais delongas, apresento-lhes meu grandíssimo número cênico, que atravessou sete continentes, três mares e, há quem diga, ainda carrega consigo uma legião de admiradores mundo afora em busca de meus segredos mais escusos e minhas técnicas mais secretas!

O sol secava — ou cegava — o semblante dos peixes mortos estirados nos balcões do bar-alfenaria, boquiabertos, descoloridos cheirando colônia barata de prostituta debutante e mágico, Betinho, se esforça para manter a chama da vida acesa na plateia de moribundos e de praticantes do coito desinibido. Até que brilhante como a chama que emanava dos primeiros gargalhos da manhã veranil, Egberto tomou para a si um litro d’absinto — a tal fada verde da discórdia — e entornou em seu corpo o líquido verdeado e filou o isqueiro bic azul na mão direita bradando como religioso-radical em dia de atentado bomba:

— Como meu número final, farei com que essa bola de foco que vocês verão desaparecer diante de seus olhos! Será um número de extrema dificuldade e perigo! Peço às donzelas que segurem firme no pulso dos acompanhantes, pois me tornei o próprio astro do dia!


E terminando seu fatídico monólogo, Betinho renasce como fênix, batendo os braços como asas reluzentes em busca do néctar do paraíso — água refresca.

Caloteiros, mal-amados, traficantes, cafetinas e suas empregadas, barmans e seus subordinados, todos foram à assistência do astro que zunia dia adentro.

Um extintor vencido, daqueles que a vigilância sanitária deveria ter recolhido há tempos não fosse a propina do Bicho e a jogadinha do bilhar & truco mineiro, deu cabo ao nascer do segundo sol.

No fim das brasas e começo das cinzas soube-se a causa da vida de Betinho, mais esbaforido que viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro em fretado sem ar-condicionado, bebida contrabandeada. Se fosse das boas, daquelas que mortificava até mais ávidas das almas, o paletó de madeira, valsa de choradeira e descanso intermitente — afinal, o homem é mágico — em casa de sete palmos.

Me aproximo do recém-salvaguardado do silêncio lágrimas e murmuro de oração e boto a mão no ombro de Egberto, ainda chamuscado, e lhe passou um copo d’água da torneira: “você teve uma sorte e tanto, hein, rapaz?”

Betinho o mata em um gole só e retruca, como quem não quer nada: “e tu acha que eu vou usar absinto de verdade? Querido, tu tem é muito que aprender com o pai aqui.”

Dessatisfeito com a reação do público, Betinho sai na fina, sem dar explicação o lugar a vida alma que habitava a recinto espelunquento, mas deixa pista com um papel borrado — com o hai-cai, adaptado, óbvio — e um número com o Dê-dê-dê do Paraná.


Espiral bimotor

Ave de papel;

Brochura sob dobradura:

Pássaro no céu.


Egberto Augusto Goght



(Créditos foto capa: Natureza Morta com prato de cebolas; Vincent Van Gogh)

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