\\ ENTREVERES
Há tiros que saem pela culatra, outros pela cloaca, dá-se a pataquada!
Por Matheus Lopes Quirino
Há uns dez anos descobri o significado de “pataquada” muito antes da palavra. No dicionário informal das variações linguísticas confere-se à pataquada a seguinte definição: É fazer coisa errada, "fazer merda", mas nada sério. Sinônimo de "presepada" ou de "palhaçada".
Foi uma descoberta um tanto trágica, que acelerou corações, ferveu opiniões e quase compreendeu um início epidêmico de fato – por sorte, meramente fantástico. Na fábula interiorana a personagem principal é uma galinha.
Bitela. Criada com milho e outros produtos da roça, vivia em um cercado relativamente grande, tinha uma vida de rainha em comparação às coitadas que nascem fadadas ao abate naquela inexorável linha de produção. Na paz do fundo de quintal, com outras galinhas, galos, pintos, perus e patos, nossa ave rechonchuda certamente foi muito feliz, com certeza passaritando e ciscando em mais de um poleiro.
A lembrança de quando minha tia avó foi acertar o futuro da galinha com sua dona continua vívida. Tia Ana, hoje retocando mais os cabelos brancos do que há mais de uma década, ainda faz de tudo para agradar. E sua especialidade é justamente galinha. Do balcão da cozinha, salivando, foi à rua uma comitiva para escolher o alvo do nosso jantar. Esperávamos uma canja da negociação. Mal sabíamos nós, o povo de São Paulo da Piratininga que estava de visita no interior do interior, que estávamos prestes a vivenciar uma pataquada digna de galinha, evento histórico na memória sentimental da família Lopes.
Pegamos ela! Fim de tarde. Voltamos com a galinha e uns temperos. A mais bonita das galinhas, diga-se de passagem. Tia Ana foi para a cozinha preparar o caldo e depois mataria a galinha ela mesma. A cidadã de penas ficou no fundo da casa ciscando seus últimos momentos enquanto uma parte da comitiva se dispersava pela casa, ninguém mais nem aí para a galinha. Seu destino, teoricamente, já era certo.
Um susto. O primo avisou: “tem alguma coisa errada aqui”. Corremos até a parte de trás da casa. As caras entortaram. Ficaram feias. Umas com dó, outras surpresas, outros começaram a bradar, com desconfiança, “Essa galinha eu não como!”. Ninguém estava entendendo nada. A pobre galinha jazia estirada dentro de uma bacia sem uma única gota de sangue.
Seria um infarto? Seria uma tática inteligente de “terra arrasada”. Seria ela mágica, atriz? Galinha não tem cérebro? Burra! Burra! Maldita suicida! E agora? Batemos asas e cada qual foi tomando partido. Uns comeriam a galinha, outros não – pelo menos até terem ciência do fatídico episódio. Joguem pô. Começaram a checar a anatomia da finada. Era morte morrida? Estava ela contaminada? Fazia cena? Não há sangue. Nada, nem nada, repetiam as vozes tremulares.
Vó Ruth foi a primeira a se retirar e a última a se convencer a comer canja. “Tem doença!”, diz ela, falando da gripe aviária do século passado, alertou-nos com um boletim epidemiológico improvisado ali. Mas ela comeu. Foi titubeada pela própria pataquada epidêmica que ela sugeriu. Não era nada alarmante. Na sessão chef de cozinha descobriram a causa do causo: ovos! A galinha estava entalada com dois ovos enormes. Morreu, não pela culatra, mas pela cloaca, coitada...
A pataquada emprestou o título à galinha. Dois grandes ovos passaram a perna em muitos seres inteligíveis. A canja foi feita e sua missão cumprida no solstício de inverno. A galinha conquistou nosso respeito, criou-se uma memória. O causo da galinha, a pataquada. Os ovos de ouro que outrora foram causo de muitas opiniões e superstições, mas eram simplesmente objeto de uma palhaçada, inventada, claro, pelos humanos.
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