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Otávia

\\ CRÔNICAS

Mas no banheiro ela estava segura, ali, debaixo das roupas sujas, sabendo se virar mesmo quando as recolhia para jogar ao cesto antes da maquina de lavar. E fim.

Por Matheus Lopes Quirino



"Menina com gato e piano" (1967), de Di Cavalcanti.

Estava no segundo trabalho de Hércules quando a vi pela primeira vez. Ela lá, toda trêmula e embarafustada. Correndo louca e resfolegante, com os olhinhos pretos esbugalhados tremendo também. Levantei e apanhei a calça jeans do chão. Escondida barra, ela voltou a se bambolear, como se fosse uma ameba quadrúpede. Nada tinha a fazer se não desejar boa sorte em pensamento, para que ela não se defenestrasse dos altos da porta de madeira. Ela subiu a parede toda louca e liguei o chuveiro.

*

Quando abria a porta do banheiro, no meio da noite (para o primeiro trabalho de Hércules), lá estava ela. Toda esquia debaixo de alguma roupa no chão. Passei a dispensar o cesto de propósito. E lá ela deve ter vivido durante a noite. Passei a conviver com ela todas as vezes em que os céus do Olimpo solicitavam o segundo trabalho. Ela estava entre as roupas sujas no chão ou em algum azulejo da parede.

A correr e a quase deslizar. Tinha dó da pequena. Sempre tive. Ela saia por aí, sozinha, indefesa. Tive medo que não voltasse. Se perdesse pela casa, ou pior: por algum bueiro, onde vivem aqueles ratos enormes. Oh, céus. Ou pior, fosse se deparar com meu primo, que confessa publicamente a vontade de matar aquela coitada trêmula e esguia.

Mas no banheiro ela estava segura, ali, debaixo das roupas sujas, sabendo se virar mesmo quando as recolhia para jogar ao cesto antes da maquina de lavar. E fim. Houve dia em que a resgatei no ato, dentro do cesto. Para que seu fim não se confundisse numa roda gigante marítima, repleta de cataclismas, terremotos e sabão. Resgatá-la era uma obrigação moral.

No segundo trabalho era de praxe vê-la zanzando. Se não era ela, era sua irmã gêmea. Ligeiramente mais rosa. Ou era ela mesma, com febre, talvez. Não a vejo há duas semanas, enquanto estou fora de casa. Da última vez que a vi, estava ela sem rabo. Um sinal para o fim dos tempos. Enquanto aquele banheiro era lavado de cabo a rabo. Fiquei sabendo, em minha ausência. Não havia mais roupa suja no chão. Nem qualquer chance de ela aparecer novamente.

Desapareceu para sempre.


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