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Olhar sobre a perda

Foto do escritor: Giovana ProençaGiovana Proença

\\ ENTRELINHAS

A ideia entrou na cabeça da mulher, que insinuava que o antigo cônjuge devia custear a obra da casa em que o filho morava, afinal, sabia que ele reservava uma quantia na poupança, fruto da venda de um terreno de família.

Por Giovana Proença


"Rusty Fold", de Lali Torma

Os respingos de sangue escorrem pela parede, em contornos de arte abstrata, como anúncio do corpo tombado. A serenidade do semblante do morto indicava que não previra o golpe. Morreu sem saber que morreria, suspirou o último sopro de ar sem saber que era o derradeiro e piscou sem saber que não voltaria a abrir os olhos. Quem olhasse de perto veria uma melancolia própria, ainda maior do que a melancolia da morte. Um certo traço de identidade perpassado por uma tristeza longínqua, o sorriso delineado tímido que esconde a lágrima que se forma e equilibra na beira da pálpebra, relutando em deixar-se cair no abismo do rosto. Morreu sem saber que morreria, e morreu infeliz, lapidado no pesar.


As constatações cruzaram em centelha à primeira vista do detetive da cena do crime, acostumado pelos anos arrastados de serviço. Ajeitou os óculos no nariz, encarando-se no espelho, lâmina reveladora que se salpicara do sangue disperso pelo golpe. Fitou a si mesmo por trás das gotículas que o conferiam pintas rubras na face pálida. Encontrou uma caligrafia rascunhada no caderninho de capa de couro preta que repousava – agora em desuso eterno – pela mesa. “Você tem que olhar para o que perdeu para reconhecer que era pouco.” A inscrição em tinta vermelha o intrigou. Atentou-se a letra, pequena e firme, levemente inclinada para a direita. Traços de sensibilidade e certos presságios de melancolia no corte do t.


Imaginou que para o morto tudo se movia. As paredes se estreitavam em toadas de suspense, enquanto a sala girava ao som do silêncio perpétuo. Era como observar o movimento urbano de um viaduto, nada que se reconheça na abrangência mundana da elevação. Não que ele pudesse ir para algum lugar, estava condenado a não se mover dele próprio. Não havia espaço mórbido mais claustrofóbico, entre as paredes e o espelho, prisioneiro entre a gaiola da habitação e sua própria imagem.


Morreu em um instante perdido entre às três e às quatro, foi informado. Um exemplar de Crime e castigo foi deixado no braço do sofá. Folheou as páginas sentindo o abandono dos parágrafos que nunca seriam lidos. O homem, estranho morto em riso fúnebre, soube do crime de Raskólnikov mas nunca conheceria seu castigo. As letras que se difundiam pelo volume de peso pareciam perder o sentido agora que o leitor deixara, em definitivo, a leitura.


O exame é cirúrgico. O identificador de chamada indica seis ligações da ex-mulher na última semana. De certo para falar do filho. Pedir mais atenção ao rapaz. Talvez se o pai pagasse uma boa faculdade, um curso respeitável, direito ou administração. Avisou que ia viajar. Duas semanas em Maceió com o novo namorado. Oportunidade para mostrar as duas lipoaspirações dos últimos anos. O botox nos braços. Plástica nos cantos do rosto. Vivia com o namorado em uma casa térrea de telhado vermelho, antes de forro, mas uma reforma há uns dez anos, inspecionada de perto pelo ex-marido, deu uma laje digna para a construção. Poderia até transformar em um sobrado, sugeriu o arquiteto. A ideia entrou na cabeça da mulher, que insinuava que o antigo cônjuge devia custear a obra da casa em que o filho morava, afinal, sabia que ele reservava uma quantia na poupança, fruto da venda de um terreno de família.


Do próprio filho, nenhuma ligação. Souberam que o Júnior sumia nas noites. Festas regadas a álcool e outras substâncias que fugiam à legalidade. Perdera a carteira provisória, conquistada ao atingir a maioridade, após apelos da mãe para que o pai bancasse as aulas na autoescola. Encontrou um comando da polícia na esquina do bar, o bafômetro revelou altos níveis etílicos, metade da garrafa de Johnny Walker. A vizinha da frente insistia em contar para quem quisesse ouvir, que quando se sentou para ver o movimento na rua terça-feira, o Júnior rondava a casa do pai, moletom cinza e olhos vermelhos injetados, até cumprimentou a senhora com um leve aceno ao constatar a curiosidade.


Na gaveta da cômoda, móvel funcional que não ocupava muito espaço no quarto, acharam a escritura da venda do terreno de família. Única herança deixada pela mãe. Morte súbita, em uma manhã fria de agosto, a diarista entrou na casa e não ouviu a movimentação rotineira na cozinha. Morreu como um passarinho durante o sono. A serenidade que ostentava no sono eterno era oposta à guerra que teve início no próprio velório. Deixara um terreno, divisão irregular, que logo tornou-se campo de batalha entre os dois filhos, ambos reivindicavam para si a maior parte. O documento às mãos do detetive era o estandarte da vitória amarga. Os irmãos romperam contato após a disputa, finalizada com ameaças de ódio até a próxima encarnação.


A cozinha rompe com a organização quase intocada do restante da casa. A pia revelava o abandono de dias. Aproximou-se das taças, uma marcada por batom, tom de rubro terroso. Gotas secas de púrpura ainda no cristalino. Desviou para as xícaras de café, o tracejar negro no fundo da porcelana branca. Por último, uma só caneca, o conteúdo ainda líquido indicava que era a mais recente. Chá de flores orientais. São sempre os rastros que falam o que se tenta ocultar. No dia depois do encontro se desconhece o retrato falado, a digital, as xícaras brancas em que se tomou o café. Prefere-se o chá, flores orientais e a melancolia da ausência em plena infusão.


O detetive ajeita os óculos no nariz. Deixou passar algo. Um rastro. Mínimo. Fecha os olhos. Um simples movimento das pálpebras. Desperta um novo olhar sobre a perda. O que deixou passar? Precisa olhar para o que perdeu para reconhecer que era pouco.

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