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O som da primeira marola

\\ CRÔNICAS

A dúvida é eterna, talvez, mais poderosa do que o próprio corpo. Ideias sobrevivem ao pó do tempo que varrem tantos corpos da mesma terra escura e inabitável

Por Affonso Duprat, Especial para Frente & Versos


Talvez tudo que precise esteja em meus bolsos, agora, neste momento. Escrevo este texto, ao fundo: uma música triste corta qualquer vago sorriso que, porventura, apareça. Me lembro da minha primeira leitura de Harry Potter e de como aquilo que todos procuravam estava em seu bolso. Tão simples, tão perto. Precisou-se desenrolar uma trama para tão simples resultado.

A vida é esta. Um conjunto de complicações que, bem ou mal, acabam indo para frente – jamais para trás. Tudo cresce e fenece. Mesmo exígua coisa que ecloda de uma escuridão tão profunda, por um ponto ínfimo do universo, como a explosão que nos originou há bilhões de anos, confrontando, anos mais tarde, o próprio Deus.

E nesse tempo perdido, fábulas e guerras se desenrolaram na literatura para afagar justamente corações solitários em busca de alguma meia verdade para, angustiantemente, sanar as inúmeras dúvidas que surgem todos os segundos nas cabeças de quem pensa. A dúvida é eterna, talvez, mais poderosa do que o próprio corpo. Ideias sobrevivem ao pó do tempo que varrem tantos corpos da mesma terra escura e inabitável.

E talvez seja complicado demais para um homem simples entender como todo um conjunto de enigmas deu origem a seu dedão polegar, e como aquelas linhas traçadas aleatoriamente no mesmo polegar conferem uma identidade indelével àquele que, porventura, o sujou de tinta, barro, sangue, poeira, qualquer fluído que imprimisse humanidade, fosse numa pedra ou útero.

A escuridão talvez seja a única certeza pois, ao fechar os olhos, antes dos sonhos e saídas de consciência, aquele escuro não incomoda, ao contrário, afaga. Uma pessoa morre e é enterrada, debaixo de concreto e palmos de terra. É um triste ritual, encastelar uma alma debaixo do chão, justo quando a matéria escorre em um caudaloso escorregador de lembranças para todos que estão ainda lá em cima a chorar e jogar flores.

Cremem. Joguem no mar de Ipanema. Toque uma canção. O som da primeira onda que traz algo à praia. Um som do primeiro samba, ou a primeira faixa de Chega de Saudade. Nada mais.

Partilhar a dúvida é a questão. A incerteza consome os homens como uma epidemia, que não necessariamente mata. Mas é a fronteira. O presente, de forma ambígua, é um antídoto para o questionamento. Pois nada há. Só o tempo que se desenrola na prática, você toca e valsa com os fios de ar que roçam suas têmporas, com o tempo surgem carquilhas e rugas.

E acabou a música inesperadamente.


foto/ Otto Stupakoff/Acervo ISR/Reprodução

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