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Foto do escritorMatheus Lopes Quirino

O despertar do despertador

\\ ENTREVERES

Uma dúvida me ocorreu, quem acorda o diabo?

Por Matheus Lopes Quirino


Os pássaros gorjeiam a caminho do horizonte. Por acaso, lá é o sul de Minas Gerais e, aquém das montanhas, cá está o cronista a preparar o café da manhã. Baralhos, estalos, batidinhas. Xícara empurra copo que tilinta colher. O café não existe, na verdade. Sônia, a ajudante, sabe bem o porquê. “Sem café! Por favor”. Ela já sabe: (In)Sônia.

Sônia na verdade não existe, precisava de um trocadilho (mineiro?) para começar o dia recém-desperto, olhando da janela do predinho baixo o além-mar de montanhas, os pássaros que gorjeiam... escutando um despertador. Uma sinfonia. Seis e pouco da manhã e as casas avizinhadas começam a despertar à ordem de seus relógios, celulares, timers eletrônicos. É engraçado como se dispõem, pouco se entrecortando e de um certo modo até ritmados. O deus relógio bem os fez, ou os vizinhos combinaram. “O meu 6h45, o seu 6h47, o dela, 6h49, etc.”.

Se não o deus do relógio, quem desperta o despertador? A mão invisível? Sem falar de economia ou da Família Adams, quem viraria a chavinha daquele maquinário complexo e trabalhoso, feito com esmero por um relojoeiro ou um ourives. Dirão que estou louco, o negócio é digital, nada há de complexo, há só uma pilha, um sistema IOS, Big Data, o diabo a quatro. Mas até o diabo acorda, e quem o desperta?

Lançar perguntas e não as responder no próprio texto é uma tática que considero evasiva e ruim. “Ah esse cara é um canastrão, não honra o espaço em que escreve”. Talvez, sim, um pouco canastrão. Mas o espaço é preenchido e também respondo a sua (minha) pergunta: quem acorda o diabo é o deus do relógio, dando corda no despertador dele, há palmos do chão, ou simplesmente em alguma casa, pelo meu ou seu bairro, leitor.

Mas talvez o diabo more no lar, escondido em alguma gaveta da cozinha ou escritório. Repararam quando some algo, ficamos bravos e impacientes, aí alguém grita “É só o diabo”. E não pode ser outro ser. O diabo vira culpado, é um álibi da desorganização, entidade mais diabólica que o próprio demiurgo.

O dia começa com o gorjear dos pássaros, olho além das montanhas, além-mar de pedras e vegetações. O céu está lindo. Como se o próprio deus, por um pequeno descuido, derrubasse uma paleta tão bem misturada que o borrão saísse perfeito. Não é ele o pai dos poetas, dos pintores, dos silêncios entre cada pincelada?

Uns dirão ser o diabo. E não duvido. Estando a casa de deus cheia, Mefistófeles pegou uns para criar, talvez fossem eles os melhores escritores? Não sei. Mas estaria eu, nessa incompreensão terrena, sendo injusto com quem está no time de deus. Como não lembrar de São Matheus, de Caravaggio, que pela incumbência de um diabólico mecenas precisou refazer a pintura. Caravaggio, refaça. Não havia Ctrl+C Ctrl+V.

Goethe certamente comungou nas duas cátedras. A angelical e a diabólica, sendo ele afamado principalmente na segunda. Santo Agostinho, já lhe cabe o pronome, celebrizou-se por ser um prodígio na escola de deus. Logo ele, que trouxe para perto de si a fama dos homens, ficou o diabo com inveja, mesmo tendo Goethe, Radiguet, Dante Alighieri, Sartre.

Aos outros escritores, incluso os mais terrenos não têm espaço mais nas duas escolas. Deus e o diabo fecharam as portas. “Chega de artistas”, disseram em conjunto. Só resta a quem está do outro lado das montanhas, ouvindo os pássaros gorjearem pela manhã, louvar o deus despertador, pois é ele que vai por sebo nas canelas, quem sabe com muito esforço atravessar as montanhas?

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