\\ ALEXITIMIA
Enquanto isso, aqui do ladinho do Chile, estamos nós: o maior país da América Latina, que preferiu seguir os passos da grande laranja que assola a paz da América do Norte e assinar a Carta da Declaração do Consenso de Genebra, em rumo ao retrocesso diário a novela mais popular de vinte-vinte.
Por Lia Petrelli
Lucia Murat, cineasta brasileira, ex-integrante da luta armada no período ditatorial e presa política, participa da 44ª Mostra Internacional de Cinema com o longa Ana. Sem Título.
O filme tem início com imagens da exposição Mulheres Radicais: Arte Latino-Americana, que aconteceu em 2018 na Pinacoteca de São Paulo. Na exposição, estão reunidas 280 obras de 120 artistas, num mapeamento de práticas de experimentação em inúmeras linguagens artísticas.
O recorte cronológico [1960-1985] é a tentativa de realocar a lacuna coletiva da produção feminina. Tanto na história da América Latina, como na construção da arte contemporânea e nas transformações acerca da representação simbólica e figurativa do corpo feminino, a mostra teve importância decisiva para apresentação de artistas pioneiras que partiram da noção do corpo como um campo político, abarcando investigações radicais e poéticas para desafiar as classificações dominantes e os cânones da arte estabelecida [até então?].
As cenas iniciais, ainda dentro da exposição mostram jogos de línguas, em imagens que intercalam uma obra artística com a personagem Stela (Stella Rabello) o que, poeticamente, nos guia ao longo do filme, já que as falas ora português, ora espanhol, quase não necessitam de tradução. Nós, latinos, nos entendemos. Além disso, a produção percorre Rio de Janeiro, Cuba, Argentina, Chile e México – em cada país adotando nova equipe a fim de explorar intimamente as muitas linguagens cinematográficas e artísticas da América Latina.
É o ponto de partida para a produção do filme produzido por Murat, já que Ana, a personagem principal que “faz do nada ter um esquisito contorno” parte justamente da imposição corpórea de um corpo subjetivo interpretado por Roberta Estrela D’Alva.
Nos primeiros minutos, a diretora dá dicas de que o filme pode não corresponder às expectativas da audiência, entre passagens de Virgínia Wolf que falam sobre como a leitura de obras de arte habitam universos individuais, costurando, assim, o filme em cenas monólogas: “É provável que a ficção contenha aqui mais verdade que os fatos.” [Um Teto Todo Seu, 1928]
Assim como em Que Bom Te ver Viva [1989], Murat intercala ficção e realidade através da metalinguagem, posicionamento de câmeras e luz, com exímio domínio da confusão organizada.
O longa, baseado livremente na peça “Há Mais Futuro do Que Passado”, de Clarisse Zarvos, Daniele Avila Small e Mariana Barcelos, conta a história de Ana, artista brasileira desaparecida. Stela (Stella Rabello), a personagem que nos direciona para a busca é uma atriz inclinada à obsessão, durante sua jornada, passa a entender as dolorosas produções de mulheres latino-americanas, viajando pelos países à procura de Ana.
No mundo das Fake News, me parece viável que não consigamos distinguir a criatura da criadora. Apesar de brincar com a metalinguagem durante toda a produção, Murat opta por passear, reapresentar e apresentar produções reais de mulheres Latino Americanas quando logo no começo do filme a fala de Stela comunica diretamente a importância de encontrar Ana: “Eu vou fazer isso – não sei o quê, exatamente – porque acho que essas mulheres estão sendo esquecidas, vão ser esquecidas, estão esquecidas; e porque eu acho que é tempo da gente falar delas.”
De fato, as produções de mulheres a nível mundial não são tão articuladas quanto deveriam ser academicamente, tampouco popularmente. Amarrando o enredo documental à ficção da trama da procura, Murat se coloca dentro do filme como personagem real, acompanhando Stela em sua busca. A diretora apresenta a existência de uma figura (Ana) recorrente em cartas trocadas entre artistas latino-americanas vítimas de violências estatais que, mesmo separadas geograficamente, se unificam pelo desejo de resistir.
Os filmes que existem dentro de Ana. Sem Título. dialogam com fluidez, pois a história que se inicia em Cuba faz o que as aulas de história do Brasil não fazem há tempos: contar mais de perto o que foi que aconteceu na América Latina da ditadura.
O obscurantismo apresentado na tela visa pensar a amplitude do que é ser mulher nessa mesma América Latina que adormece de tempos em tempos, mas que volta como redemoinho para assombrar a existência da união feminina. Dentro da realidade ficcional, Andressa Clain Neves (técnica de som que participa ativamente do filme) comenta sobre o desconforto angustiante de ter sido a única pessoa da equipe parada nos aeroportos e ter sido interrogada por quatro policiais homens, pelo simples fato de ser negra.
Ana existe? Os contornos da personagem são fantasmagóricas construções da produção artística que deixa rastros por onde passa: país a país, Ana edificou sua resistência como que perseguindo a injustiça para traçá-la de uma vez por todas com o peso de seu próprio corpo: mulher negra e lésbica, viva entre os períodos mais truculentos da história latino-americana.
A feminilidade latina em tempos de repressão aponta para assustadora ressonância com o cenário atual, o que me faz pensar sobre a construção do Brasil dentro da América Latina.
O Brasil faz parte da América Latina?
Entre trancos e barrancos nossa esperança pende por um fio, em contrapartida, como canta Ney Matogrosso, eternizado por Secos & Molhados: “meu sangue latino minha alma cativa”.
Me parece que o Brasil tem mais desejo em ser American do que fazer parte da América Latina, mas eu espero muito estar equivocada.
Enquanto o Chile assume a derrubada da antiga constituição militar e se reergue, apostando em uma nova constituinte, honrando a tradição chilena de nacionalidade, nosso país capenga assinando leis absurdistas.
A mesma constituição aprovada agora lá no Chile foi elaborada entre 2000 e 2006, mas na época a direita assumia fervorosamente o parlamento e os militares exerciam grande influência na maioria das instâncias legislativas e executivas.
Felizmente, a urgência de mudanças no país despontou em massiva participação popular que, mesmo em período de pandemia, votou a favor da mudança do plebiscito elaborando uma nova Assembleia Constituinte, que muda os feitos da ditadura na década de 1980.
Basicamente, os protestos ocorridos em outubro de 2019 deram resultado: a nova Assembleia, a ser formada em abril de 2021, fala sobre a equalização dos gêneros – isso quer dizer que deverão participar do parlamento igualitariamente 50% mulheres e 50% homens.
Na votação também ficou decidido que a Assembleia agora deverá ser formada por novos membros eleitos, sem necessidade da filiação partidária.
Enquanto isso, aqui do ladinho do Chile, estamos nós: o maior país da América Latina, que preferiu seguir os passos da grande laranja que assola a paz da América do Norte e assinar a Carta da Declaração do Consenso de Genebra, em rumo ao retrocesso diário a novela mais popular de vinte-vinte.
Nossos desgovernantes parecem querer nos esgotar por completo.
Caso você ainda não tenha entrado em contato com a Declaração do Consenso de Genebra, amarra o coração no lugar mais alto que você conseguir:
Dia 22 de outubro o Brasil participou da cerimônia virtual com mais 31 países onde assinaram a tal declaração. Se trata de um documento que pretende “defender a importância de garantir o acesso das mulheres aos últimos avanços na promoção de saúde”, e de quebra reforçar o papel da família como base fundamental da sociedade.
Beleza, né? Parece um avanço.
É isso mesmo. Parece.
A carta assinada faz parte do conservadorismo de direita que critica as ações da Organização das Nações Unidas (ONU), e o documento vai na contramão das indicações feitas pela ONU, entre elas o documento de 2018 publicado pela Comissão de Direitos Humanos que diz sobre o direito fundamental das mulheres de tomarem suas próprias decisões sobre a gravidez:
“[A gravidez] Não apenas cria obstáculos para seu desenvolvimento psicossocial, como se associa a resultados deficientes na saúde e a um maior risco de morte materna. Além disso, seus filhos têm mais risco de ter uma saúde mais frágil e cair na pobreza”, declarou Carissa F. Etienne, diretora da OPAS.
Uma vez tendo assinado a carta, os países se comprometem a proteger o direto à vida, mas nós sabemos o que isso significa: os chamados pró-vida ganharam um capítulo da novelinha, o aborto não faz parte da preservação à vida, até porque a preservação basilar da “família tradicional” só quer saber da clássica composição de homem com mulher e filhinhos.
De praxe os títulos [direito à vida e preservação da família] escolhidos pelos governantes mundiais mascaram o real intuito das declarações que vêm sendo assinadas: prezar pelo direito e acesso da saúde da mulher não tem nada a ver com saúde quando o aborto é excluído do rol de procedimentos sanitários.
Os países presentes na lista de assinatura, todos conservadores, concordaram em assinar um decreto que mais uma vez arrebenta o fio tênue de liberdade que, diariamente, lutamos com unhas e dentes – na medida do possível.
Aliás, o Brasil foi o único país sul-Americano a assinar a tal carta.
Ao assinar o documento, a ministra da “Mulher”, Família e “Direitos Humanos”, reforçou seu compromisso com o governo brasileiro, declarando que o incentivo à saúde das mulheres E meninas vão de encontro à saúde sexual reprodutiva, além de deixar claro — no dia 26 out. 2020, durante homenagem feita em Porto Alegre — de que “ninguém se mete na soberania nacional”, mencionando veladamente as propostas pela ONU.
Ou seja: as intenções da ministra e do governo brasileiro ao assinar a declaração consistem em apresentar tratamentos que incentivam a gravidez em prol da vida familiar: o prazer e saúde não têm lugar no corpo da mulher.
Não desamarra o coração lá de cima, ainda não:
A Declaração de Genebra fala que o aborto não deve ser promovido como método de planejamento familiar, e que qualquer medida relativa a isso nos sistemas de saúde só pode ser determinada pelos próprios países, em nível nacional.
Apesar de os países “não terem a obrigação” de seguir à risca o que foi proposto na Declaração, um dos países a assinarem a carta foi a Polônia. Não passados quatro dias da assinatura do documento, o tribunal constitucional do país decidiu que o aborto passa a ser proibido e criminalizado inclusive nas instâncias em que o feto sofrer qualquer má formação, ou for acéfalo, além disso não há mais garantia o abortamento seguro no país. O resultado são manifestações pelo país. Com razão.
O que me custa a engolir esse samba sem enredo proposto pelos desgovernantes deste país é que, ainda que os países não sejam obrigados a seguir as leis impostas pela Declaração, os primeiros países a assinarem a carta são os que possuem as leis mais conservadoras do mundo, não só em relação do aborto: relacionamentos LGBTQIA+ podem ser punidos com pena de morte, casamento infantil é permitido, e daí pra pior.
Ou seja, qual o intuito do Brasil em assinar tal declaração?
Que o governo brasileiro trata a população como imbecis, já não é novidade.
Mas quem lá dentro irá falar diretamente sobre os acontecimentos velados e a intenção de extermínio proposta por essa parte da história?
Não precisamos ser gênios da lógica e da moral para entender onde isso tudo vai dar, né?
Sinceramente, não sei como vocês andam desse outro lado da tela mas, pessoalmente, não posso entregar minha vida nas mãos de pessoas-personagens que agem sempre por debaixo dos panos por aqui.
O desincentivo da educação, da cultura, da saúde e da liberdade de expressão corta o interesse geracional em atrelar o Brasil como parte da América Latina, uma vez que a extrema-direita converte perversamente jovens ao longo dos anos, através das armas mais óbvias e batidas: a religião, o futebol, a cervejinha no fim do expediente, o fim de semana para relaxar, e por aí vai.
O interesse de nosso representante em seguir os passos obscuros que abraçam a América do Norte mostra mais uma vez como o isolamento do Brasil de seu próprio continente e de seus semelhantes se interessa mais pelo macabro plano econômico do que pela sua própria população, história e vida.
O Brasil parece se recusar a participar do movimento de evolução dos países vizinhos, muitas das vezes através de discursos racistas, xenofóbicos e maldosos (alô Maradona e Pelé, vocês ainda são inimigos?)
A maior forma de controlar a massa de um país é apagando sua história.
Não ao acaso, nosso representante (ficcional) militar paraquedista sempre reforça a ideia de que a ditatura no Brasil não aconteceu. Para direitistas conservadores, basta uma vaga no céu paga a prestações para que todos os pecados de seus antepassados sejam perdoados.
Por mais que tenhamos aqui em São Paulo o Monumento do Obelisco – onde estão guardadas as memórias dos estudantes mortos durante a revolução de 1932 – , o Monumento foi isolado da participação do público no governo de Getúlio Vargas e é hoje guardado por militares; o lugar que outrora foi coração do Parque Ibirapuera, hoje não passa de um ornamento da cidade, assim como tantos outros memoriais espalhados e silenciados pelo país.
Das controvérsias sobre o governo de Vargas, o que sei desde criança é que nem sequer minha mãe sabe direito sobre o período, uma vez que ela foi criada durante a ditadura militar no Brasil, e desde lá já eram cortadas as informações educacionais: a aula de história era inexistente.
Pulamos períodos inteiros, apagados radicalmente da história brasileira. Não é de se admirar que a união do povo brasileiro não seja a mais exemplar. Divididos entre esquerda e direita, Sulistas e Nordestinos, Paulistas e Cariocas, ainda parecemos ter um longuíssimo caminho a percorrer para que sequer sejamos capazes de tocar a importância histórica do que acaba de acontecer no Chile, por exemplo.
Apesar de tudo isso, ainda tenho por dentro um maldito barulhinho que ferve e me tapa os ouvidos querendo acreditar que o entendimento da massa mude em tempo – por mais difícil que seja acreditar que as eleições da prefeitura serão o grande estopim da geração que participo.
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