\\ CONTOS
É impossível notar a beleza física de uma ideia, o alaranjado de um temor ansiogênico, os profanos ângulos das intenções ascéticas
Por Tomás Fiore Negreiros
The Dance Class (1874), Edgar Degas
Noite escura, daquelas que abrigam os “quase”, os “por-vir”, os “não-ser”; noite em que o contradito se faz lei, e o reinado penumbroso das incertezas atrai a promessa luminescente de uma espécie em especial: a casta heterogênea e curiosa dos pensamentos. É justamente essa atmosfera de dúvida e desverdade que atiça o olfato destas criaturas; convocando não uma, nem duas, mas um bando inteiro que, em apenas um enxame, questiona, afirma, crítica, confunde e deduz.
Rumando sem direção, vagando pelo éter noturno, eis os pensamentos agraciando as lamparinas e holofotes, estrelas e luar, com sua dança, que, dada a grupalidade do espetáculo, radicaliza e coloca em suspensão qualquer simetria e fronteira entre uma apresentação de can can em um cabaré e um espetáculo de balé ocorrendo em uma nobre corte do antigo mundo. Mas não se deixe enganar: tal comportamento grupal não se deve a alguma estratégia de sobrevivência ou instinto coletivista dos danados; pelo contrário, é o mero prazer individual pela desordem, pelo não-padrão, que garante qualquer possibilidade de organização deles.
É um erro assertivo; um belo espetáculo financiado pelo acaso e produzido pela aleatoriedade. - Será que a coreografia seria tão apreciada caso seus possibilitadores tivessem certeza sobre o que estão a fazer? Dúvido muito! - Talvez seja oportuno concluir que a natureza do zanzear pensativo se deva à sua analoguês com o caminhar embriagado: daquele que, ou se conhece demais, ou se conhece de menos, mas sempre sabemos do que se trata, sempre há um parâmetro em vista.
É exatamente desta maneira, indo cá indo lá, um lado-o outro, que eles, desprovidos de direção ou sentido, habitam o luar. É o mover pelo mover-se, o fim produzindo seu próprio meio, o passo alimentando as caldeiras efervescentes de seu andar. Pois talvez seja exatamente por conta desta acentuação autoestimulante do mover-se que possamos afirmar: o bailar dos pensamentos não é feito para o público. Este pode até estar lá, mas jamais saberia desfrutar do equilíbrio daquele bambolear obscenamente pudorizado, organizado em cada instante de caos: desde o Plié que engatilha a energia pulsante, desfrutando do Rond de Jambe que semicirculariza as energias, até o Jeté que explode em mil fogos de artifícios; imanência presente no belo, na energia que performatiza em seus próprios saltos atômicos…. E nesse movimento circular dos próprios dançarinos, retornamos ao aviso: o Balé dos pensamentos não é feito para o público, mas sim para o bel prazer dos bailarinos, que gozam de seus próprios movimentos frente ao espelho.
Minto! Há sim uma apreciadora da arte, quase extinta, da fluidez pensativa: a própria noite. Talvez a peculiaridade de ser a única a chamar para si a responsabilidade de público se dê por ela ser tanto espectadora, quanto cenário do espetáculo; por ver seu próprio corpo jogado em cena. A noite performatiza junto com os pensamentos, acolhendo seus movimentos e permitindo-lhes sentido no mundo, garantindo espaço e lados para seus giros e piruetas, possibilitando altura e profundidade para seus saltos, seus dançarinos, seus cenários, seus seus seus.
Não se sabe mais distinguir um do outro: há de haver espetáculo para haver noite, assim como a escuridão é intrínseca aos raios de luz que emanam de cada mover de pés ou estremecer de braços. Mas como já é amplamente sabido, a noite não mede esforços para atrair os olhares para si (não é à toa que não se dá com o astro rei), ignorando completamente tal simbiose entre seu ser e o espetáculo. É assim, prevendo o total ofuscamento da beleza gótica de seu cenário diante da leveza dos movimentos e do flutuar dos corpos daquele grande baile que ocorre em seus domínios, que a noite se prepara para não deixar passar batida; veste-se com seu melhor traje: um jaleco grosso, que exubera a beleza da escuridão noturna sob a densa névoa que orna.
Vaidade pura!
Vaidade que apaga o pouco brilho que os pequenos desvagalumes do pensamento carregam em si. Tornando seus corpos e formas irreparáveis, imperceptíveis ao globo ocular de quem quer que seja. É impossível notar a beleza física de uma ideia, o alaranjado de um temor ansiogênico, os profanos ângulos das intenções ascéticas ou mesmo os pequenos alvéolos das ideações suicidas.
Não tomo aqui, como alguns podem indagar, coelho por lebre; não atribuo o espetáculo à uma companhia de balé diferente daquela que efetivamente o performatiza: pensamento e sonho compõe o mesmo espetáculo, só que em atos específicos à natureza de cada um. Há um ato específico para seus movimentos e números ilusionistas. É justamente aí que recai sua individualidade frente aos demais pensamentos apagados pelo clamor noturno.
Toda delicadeza e refinamento do balé, apagado pela voracidade da noite, ganha notas graves de obscurantismo, inaugurando aquilo que parece ser uma mistura de balé com show de mágica no-sense em programa de auditório.
“INTERVENÇÃO SURREALISTA” grita a placa do ato onírico. Todas as atenções, convocadas repentinamente, se voltam para o palco, nem a própria noite consegue mais ofuscar o brilhor da produção de sonhos. Ballet mágico em que, após enfiar um coelho na cartola, tira de lá o próprio público pelos cabelos; que afia na lima uma singela margarida e corta o braço do menininho da primeira fileira.
É um show que vivenciamos, sentimos na carne, a nossa verdade transvestida de ilusão. Quiçá resida na violência do ato a principal diferença entre o Balé dos pensamentos e sua faceta no show dos sonhos. Mas assim como em uma mudança de humor abrupta, como o findar de súbito momento de loucura e delírio, o espetáculo retorna os seus traços amenos e leveza do balé. A noite impera novamente, e os pensamentos passam a ser novamente espectros negligenciados.
Cegos e desensibilizados, nos encontramos com os pensamentos aos encontrões, batidas, empurrões, trombadas …. E não poderia ser diferente: nem sabemos que há um espetáculo ocorrendo; entramos no palco completamente alheios à natureza própria do ser dos pensamentos, não nos faz sentido o tom animalesco e improvisado do espetáculo; é uma outra linguagem, uma arte reservada à névoa da noite e encortinada por nossa própria razão, impossibilitando que gozemos da dança e sejamos deixado às cegas, guiados unicamente pela distante e abafada música regida pela orquestra.
Sobra-nos a única possibilidade de encontrar os dançarinos tropeçando, esbarrando neles. Mas quando os encontramos, já é tarde demais: nos metamorfoseamos com tais criaturas invisíveis e não sabemos mais se somos os telespectadores, os bailarinos ou os faxineiros que limpam o palco depois do espetáculo. Estaria aquela epifania dentro de mim, resultado da maturação das minhas faculdades cognitivas? Mas o dia era tão brilhante e colorido ontem, por que será que tais pensamentos depressivos vieram apenas a desabrochar no dia de hoje?
E é desta maneira, questionando-nos sobre o inexplicável, que perdemos nobreza do Balé dos pensamentos; acreditamos que as ideias estendem do nosso ser, de nosso próprio raciocínio, quando apenas as abrigamos em sua dança por mero encontro do acaso.
Mas quem sabe, quem sabe por mera benevolência do desconhecido, um dia eu possa presenciar o nascimento de um pensamento em sua instintividade dançarina. Poder guardar comigo tal testemunho do ente pensativo em sua natureza pura, sem censuras ou vergonha. Ou talvez essa seja mais uma alucinação diante de um esbarrão às cegas com um bailarino. Quem sabe tornei-me noite e sou palco do espetáculo agora. Quem sabe…
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(Título atualizado em 08/07/2020)
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