\\ TERCEIRO SINAL
Era aquele mesmo tempo, o mesmo sentimento, o mesmo afã. Ele saía à rua, preocupado, insistente, cheio de desesperos.
Bruno Pernambuco
Era aquele mesmo tempo, o mesmo sentimento, o mesmo afã. Ele saía à rua, preocupado, insistente, cheio de desesperos. Firmemente agarrava o bolso interno do paletó, preso, temerosamente, àquele minúsculo explosivo, que mal era possível sentir, e a cada passo lhe acompanhava o pensamento de tê-lo perdido, e que subitamente o pequeno envelope plástico não estava mais com ele.
Tentava correr pela rua agitada; em cada passo, dava de cara com um outro velho, de quem precisava serpentear-se. Avançou assim, pouco a pouco, em meio aos xingamentos, até num sopetão dar de cara com a figura- o vestido rosa, o casaquinho de lã rosa, e o chapéu igualmente rosado. Aquela miniatura em nada se comovia com o encontro, permanecendo, ainda, perfeitamente estática, desavisada do perigo. Ele chacoalhou-se inteiro, quase deu uma pirueta, agora ainda mais agarrado na bijuteriazinha do bolso interno do paletó, pois não só a vida dependia disso, mas também as vidas erradas, ali a seu lado, fora da destruição planejada. Demorava a recuperar o ar, entre suspiros profundos. Percebeu de súbito que a figura rosa agora se aproximava
- Deixa essas flores comigo, querido. Ele olhou, confuso. As flores que você carrega, eu vou ficar com elas, tudo bem?
Não respondeu nada. Deixou nas mãos da senhora o buquê de flores, tinha pensado, o disfarce perfeito para o homem de negócios atarefado! Com certeza quem o visse iria pensar que sua pressa vinha realmente de algo muito importante que havia para fazer, e que ele, sendo um homem tão importante, além das suas obrigações, que já, certamente, justificavam sua ânsia, havia além disso as vontades do coração, e então duplamente não cabia censura, nem interjeição, nem pedra no caminho daquele homem. Ainda estava confuso pelo encontro com a velha, mas como? Porque? Havia algo lhe dizendo para abandonar a ideia?, mas, enfim, seguia em frente, afinal ainda tem de ser feito o que tem de ser feito.
Ela abriu a porta da garagem, desceu a rampa e entrou pela porta principal. Logo era interditada, pela voz que acabava de encontrar na sala
- Que demora é essa, mãe! Tava quase chamando a polícia
- Não enche o saco, minha filha!- respondeu, a voz subitamente áspera e engravecida, enquanto arrumava o buquê num vaso branco de porcelana.
- De onde são essas flores?
- Conheci um moço hoje na rua que me entregou. Tem algum problema, por acaso?
A moça dos cabelos loiros lisos respondeu a aspereza da mãe com um sorriso meio de desgosto meio de alegria meio de surpresa.
-Sorte que eu não tinha saído ainda...
Despediu-se, somente, saiu pela porta principal, atravessou a garagem e foi até a rua. No caminho ouviu os dois senhores, cabelos brancos, camisa xadrez aberta, entre pigarros comentarem qualquer coisa a respeito de uma bomba, sobre as notícias que a televisãozinha trazia do ocorrido. - Uma bomba! Ela pensou. Como que acontece isso? Quem se preocupa com uma coisa dessas?... Não foi muito o seu pensamento, não era muito o tempo de caminhada até chegar ao cinema. Entrou e foi logo até a mesa no café. Ele a esperava, a mesa branca com um vasinho de flores, camisa branca, as mangas arregaçadas, o sorriso meio tonto, a calma meio estúpida, a mesma de sempre. Os dois se olharam atentamente, naquele lugar já esvaziado e tomado pelo silêncio, estranho. A pouca gente que andava por lá era quem parecia não saber de qualquer alteração à vida cotidiana, seguia quem a nada acontecera, afinal nada era o que sempre acontecia, e nada era o que tinha pra acontecer. Mal viram os dois o tempo da espera antes da sessão, e mal, também, perceberam aquele filme, estranho e desconexo, mas talvez qualquer coisa fosse sê-lo ali. Saíram os dois em direção à noite gelada. Caminharam rua acima no silêncio da noite, o mais confortável e ao mesmo tempo o mais penumbroso. Decidiram parar em um dos lugares abertos. De repente, entre fatias de pizza, movimento, garçons atrapalhados com a demanda de quem subitamente devia suprir a clientela de cinco restaurantes usuais, todos com as portas cerradas pelos donos acovardados, sentia-se, pequeno que fosse, o retorno do ânimo.
- Sorte que a gente não foi naquele jantar do Tiago, hein! Disse ele, ria um pouquinho, voltava a boca à taça de vinho suja de queijo nas bordas. Imagina, depender de metrô agora. Ou pior…
- Põe sorte nisso.
Ela completou, e mais que isso encerrou a sentença, séria, grave, depois sorriu, e o leve sorriso rapidamente numa explosão de risada por dentro, até finalmente sair num grito curto, mas suficiente para espalhar vinho não só pela sua blusa preta, mas também pela camisa branca à sua frente, e até para as mesas do lado. Ficaram os dois tomados num sorriso súbito, num ardor tranquilo, e assim pelo resto do jantar, quando os desenhos no ar com o garfo, o cruzar das pernas, os sons metálicos, de batidas, de brindes, diziam bem mais que a conversa que tentava retomar algo de banal que ficara esquecido e que… bom, assim ficou. Levantaram-se, pagaram o jantar e caminharam mais uma vez pela noite, afinal, melhor amiga das solidões, e mais forte que nunca essa amizade quando é uma solidão que se pode compartilhar. Nada conseguiria, naquele instante, destruir a cumplicidade da alegria silenciosa. Não foi muito tempo de caminhada. O beijo de despedida no portão, amanhã o dia ia ser longo, ele passava bem cedo, e dessa vez vinha de carro. Ela bom era lembrar de empacotar tudo, certo? Acenou com a cabeça, com o sorriso cúmplice de quem sabe que ele sabe também que ela faz de bobo todos esses acordos. Despediram-se uma última vez, num abraço demorado. A última noite antes da primeira noite na casa nova. Ela entrou pelo portão principal, depois dele ter finalmente, e a todo contragosto, desaparecido no carro vermelho, atravessou a garagem e dessa vez entrou na casa pela porta lateral, de vidro. Tirou os sapatos e os deixou apoiados no quintal. Sentiu os pés tocarem o chão gelado de madeira. Foi até a cozinha, e tirou da geladeira um copo de água. Atravessou a sala mas, ao chegar perto das escadas que levavam ao andar superior, onde ficavam os quartos, notou com o canto dos olhos o buquê de azaleias que repousava no vaso ao lado da televisão, as moscas lhe rodeando, naquele silêncio pacato que a noite parecia ruminar. Teve uma sensação ruim. Sem saber de onde ela vinha, subitamente viu-se caminhando até o vaso. Arrancou o buquê de camélias e ainda sem se dar total conta dos próprios abriu a porta de vidro e atirou as flores no quintal. Aqueles flores tristes e já meio murchas, sebosas e rotas, tinham cara daqueles presentes velhos, que se dá sem pensar muito em quem vai receber, e quando não se tem sequer tempo de pensar. Ela se virou, apagou a luz marrom da sala e subiu as escadas. Entrou no quarto à direita e, sem acender a luz, esgueirou-se para dentro da cama grande, em meio a um sem-fim de caixas de papelão abarrotadas. Dormiu.
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