\\ ENTREVERES
Ainda nas calças da revolução, pensei em perguntar quantas bundas, anônimas ou famosas, passaram por ali
Por Matheus Lopes Quirino
Conforme descíamos a rua Augusta (estava com uma amiga), rumo à confraria habitual, eis que uma portinha estranha nos trouxe um ar curioso. Era uma lojinha um tanto lúgubre, mal iluminada, cheia de plantas e cacarecos – alguns incomuns, já expostos na vitrine, logo de cara para intrigar o transeunte mesmo.
Tinha um certo ar de garagem, mas garagem não era. Um quê de barbearia, pois havia um poste ali, desses pintados, assemelhando-se aos pirulitos doces do natal, aqueles canudos bicolores brancos e vermelhos. Mas este não brilhava feito no natal. Tampouco aquele estabelecimento era uma barbearia: o espaço estava abarrotado de cabeludos, típicos roqueiros rebeldes de trinta anos.
Curiosos que só, descemos os degraus da escadinha para atingir um certo frescor em nossa poeirenta curiosidade. De cara fomos recebidos com um “Desculpe a poeira…” – frase de auto culpa, do tipo: “Entre, não vou limpar nada para você, freguês, faz parte do ambiente, é proposital – dito por um indivíduo que se colocava à luz depois de muito tempo – essa era a impressão.
Tal figura, emergindo das trevas daquela fusão entre garagem, barbearia vintage e closet do tio avô, mesmo aparentando ter saído de um conto de Poe, não era nada amedrontadora. Pelo contrário. Pitava simpatias aos dois únicos estrangeiros dali. Terminando a saudação, acendeu um cigarro: era liberado o uso naquela época.
Esquálido, um tanto amarelo, repleto de tatoos, alargadores do tipo indígena e uma cabeleira de botar inveja nas crias do roqueiro Slash. O simpático vendedor deu-nos a receita daquele estabelecimento que nos atraiu por vias incomuns, descendo a calçada. Enquanto o ‘rapaz de trinta anos’ nos situava naquele labirinto de casacos e camisas, adentrávamos mais e mais por aquele universo empoeirado, donde partituras dos Rolling Stones tilintavam cada vez mais alto, conforme a luz da rua minguava… e nós aos fundos da loja – e põe fundo nisso.
Era um brechó antigo. De homens. Só de homens. Um ambiente um tanto hostil, não fossem as samambaias sobreviventes naquele subsolo habitado por traças e umidade e minha amiga ali achando tudo muito “cúll” – esse mesmo, deturpado por um acento agudo e dois l’s, vindo lá debaixo. Havia vida ali.
De zíper fechados, no jargão popular, atentos. Escutamos de forma atenciosa o vendedor explicar a proposta do estabelecimento. O rapaz, imerso em sua didática, à moda professoral, explicava-nos que tudo ali era original. Itens passados de geração a geração. De peças únicas feitas sob burlescas encomendas aos sobretudos padrão da Brooks Broders: este era seu barato. Mas para nós, meros clientes alçados por sua eloquência, aquele barato poderia sair caro.
O acervo dispunha de variadas coleções, de marinheiros a escoteiros. Punks a mauricinhos, dentre outros. O homem tirou de uma arara uma jaqueta de couro, com largos bolsos e muitos botões. Algo meio bege, um tanto amarelado. E ele dizia: é dos anos 1950, original. Começou a contar a história da peça, quem a vestiu, onde morou, que cargo ocupou. Por um acaso, pertenceu a um estudante londrino que passava as tardes observando o Golden Eye e morava próximo à Notting Hill.
E tudo ali tinha um porquê. Um dono, ou vários. O rapaz puxou duas calças de sarja, um tanto desgastadas, pesadas, uma delas praticamente desfiando – a chamada “carne de segunda”, se um ácaro fosse degustar aqueles fios. Ele dizia que aquelas peças foram usadas por operários franceses na década de 1960, em meio a Paris revolucionária – embora não tenha feito menção alguma a chaussettes que embalavam os pés metidos nas portas da revolução. Conforme veio tal fala, deu-me um frisson, ah. A mente descortinava, assim que a história era posta, aquelas barricadas estudantis no Quartier Latin, ou na rue de La Sorbonne. C’est grandiose!
Às calças da revolução, de boca cheia, pensei em perguntar, embora não tenha o feito, em quantas bundas, anônimas ou famosas, passaram por aquelas pantalons dali (a viagem foi longa!)? Qual seria a mais heroica de todas? E a prega mais polêmica – embora não faça tanta questão – que ali fora encoberta?
Certamente ele seria pego de calças curtas. Peça vai, peça vem. No meio de tantas roupas cintilava um berrante macacão laranja, desses de presidiário – certamente encalhado ali há anos. A vontade veio até a ponta da língua para a pergunta: quem foi o presidiário e qual crime horrível ele cometeu? Contudo, batizado pela noção, seria muito vil ferir os sentimentos do moço, trajado em uma nostalgia que ele não viveu, apresentando aquela veste enquanto vestia a camisa da empresa – uma provável relíquia em uso, embora um tanto esgarçada no colarinho, que dali a bons anos seria superfaturada com uma história cool (e cifrada).
Tentando voltar à luz deste século, giramos o pequeno brechó subterrâneo, nutrindo o desejo de passar na primeira Levi’s e comprar algo novo, sem história nenhuma. Naquele túnel do tempo os tecidos pesados carregavam passados manchados de suor amarelo, literalmente. Saímos de lá com o rapaz indicando a sucursal feminina do brechó, umas quadras à frente. Minha amiga, expert em tudo que há de roupa – haja vista sua coluna de moda no primeiro jornal que trabalhamos juntos –, advertiu-me: “Aquela camisa Saint Laurent era falsa”. Fiz ter sacado, cento e poucos para uma peça desse calibre era de remexer Yves a sete palmos.
Curiosamente não perguntamos a história daquela peça. Contudo, sendo falsa ou verdadeira, o vendedor traria para nós o último escândalo das passarelas francesas, algo très chic, digno de semana de moda, há décadas em uma Paris de Catherine Deneuve, Brigitte Bardot, Coco Chanel, Jeanne Moreau – mesmo o brechó vestindo apenas o público masculino.
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