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Foto do escritorTomás Fiore Negreiros

No baixar da fumaça, as vespas montam ninhos

\\ CONTOS

Era salgado o som das vespas, seus gritos, seus aplausos … suas asas batiam águas salgadas e diziam “adeuzzzzzz”.

Por Tomás Fiore Negreiros

"Bandiere all'altare della patria" (1915), de Giacomo Balla*.

Eles estavam chegando



Impelida pela violência telimagética propagada pela pequena caixaFUMAÇA.

FUMAÇombreada manchava imagens à la rorschach no papel de parede listrado.

Feixes cinza-clareados subiam e somavam sobre o cinzeiro atacandoFUMAÇA.

FUMAÇurradadasmassas esfumaçando tempestade sombreada assaltando a sala.



— Meus irmãos, minhas irmãs. Gostaria de saudar todos vocês; vocês que estiveram comigo desde o começo da nossa jornada, vocês que carregaram em seus ombros, e vão continuar carregando, a nossa causa! — palma, palma, respiro, retoma o fôlego — Saúdo os irmãos dos pampas do sul; saúdo os irmãos do norte que desceram até aqui; saúdo nosso povo nordestino. Saúdo todos vocês, meus irmãos e irmãs de pátria. O futuro do nosso país será impulsionado por vocês, por nós. Nós somos o futuro!

Corta a cena. A tela do aparelho é tomada vertiginosamente pela multidão. Homens, mulheres, crianças, crianças, bandeiras flamulavam em contorno ao vento, homens, ‘quem?’, homens, punhos cerrados, ao fundo o horizonte, ‘quando?’ mulheres, homens, ‘vivaaaa!!!’, homanças, chapéus erguidos, crianças, ‘irmãos’, pôr do sol eterno, a fumaça do cigarro de uns, mulhorens, aplausos aqui, gritos lá, crianças. A massa. A praça. Pra sempre.

Corte. A câmera volta a enquadrar o palanque; a centralizar o maestro que lançava olhares contundentes à multidão, regendo a sinfonia polifônica que assaltava a acústica da praça televisionada. Era homem-rocha: apoiava o braço firme no orador sem perder a rigidez e postura. Viril. Era tão sólido e concreto quanto seu discurso de aço, quanto qualquer um ali presente naquela cena futurista, surrealista. Imponente, levantou o braço, sustentando o ar em toneladas.

Silêncio.

— Mas se nós, homens e mulheres; se nós, o povo, somos o futuro ... é porque temos um presente em comum. Um presente que recai sobre cada um aqui — erguia o dedo direcionando-o para as partes do conglomerado, cada um que compunha o todo — mais que um presente, temos um dever para com a NOSSA pátria amada. Um dever para com esta vasta e rica terra. Pois, apenas podemos cuidar dessa terra se ela nos pertencer. Minha, sua, sua, sua — apontava para o amontoado de corpos — NOSSA! Precisamos fazer deste país o que ele sempre foi; NOSSO! Não vamos deixar que os vermes usurpadores tomem aquilo que é nosso por direito: a NOSSA terra e NOSSA liberdade.

Aplausos. Gritos. Assovios.

Silêncio. Contornadas pela fumaça, as palavras deferidas passaram a ganhar presença e pairavam pelo meu cômodo. “Vermes” e “Usurpadores” nebulosos saiam do aparelho televisivo e ressoavam bem diante de mim. Uma familiaridade estranha que assolava-me em disparos espontâneos de sentimentos e lampejos de sensações fantasmagóricas. Reboliçado pela fumaça venenosa, o estômago me questionava sobre tais palavras: de onde vinham?

Arrancado pelos ralos fios de cabelo que ainda me restavam, levantei da poltrona de imediato. A passos bambos e tortos, fui até a pequena cozinha que compunha o apartamento. A mão era imprecisa e incerta ao segurar a caneca de metal enquanto a enchia com água do filtro de barro. Talvez ajudasse a descer melhor. Respirei fundo. Tomei um gole. Cuspi. Tinha gosto de enxofre. Não cabia-me à boca.

Virei-me para trás, de onde a televisão ainda soava.

Aquele homem era um completo estranho. Em nada lembrava daquele menino magrinho dos cabelos castanhos escuros e desgrenhados. É claro, impossível não reconhecer o seu nariz achatado e os lábios grossos. Mas fora isso, em nada se assemelhava aquele garoto de vocabulário restrito e ingênuo, que presenteava com palavras apenas o que carecia de nomeação. Daquela criança que se entregava à magia do silêncio do que não era chamado, que comovia-se com a existência muda dos mistérios. Sua própria existência silenciosa.

Ouvia mais palavras gritadas da sala:

— Pois é meus irmãos e minhas irmãs! São vermes que vagueiam por nossas terras, que se apropriam das nossas riquezas, que sujam a nossa moral, desvalorizam nossos costumes, censuram o que devemos e o que não devemos dizer … vocês sabem muito bem quem são esses vermes-parasitas que sugam a vitalidade do nosso povo trabalhador.

Sabemos?! Sustentava-se o questionamento asfixiante.

O ambiente foi tomado por um enxame de vespas raivosas, de gritos e vaias consonantes, veias pulsantes: sim, eles sabiam e concordavam.

Mesmo fora da sala, o vespeiro sonoplástico alcançava meus ouvidos: uma a uma, saiam da caixa televisiva e voavam impetuosamente até minha orelhas, meu crânio. Alojavam-se no orifício auditivo momentaneamente; o som alado das palavras não durava muito. Miravam mesmo em meu estômago, meu fígado.

Sim, as minhas tripas eram seus verdadeiros alvos. Desciam diretamente em sua direção. Uma vez lá, picavam-me as entranhas e depositavam ovos que eclodiam em taturanas; queimando, ardendo, inflamando a carne e subindo como acidez corrosiva. Asas, ovos, ferrões e pelos me sangravam a garganta e arrancavam a boca.

Caído na cozinha e com as pernas entre os braços, ele continuava implacavelmente:

— Mas o que eles não contavam era com a verdadeira essência guerreira do nosso povo! A verdadeira potência que infla e faz arder cada um dos corações aqui — o enxame retornava ao seu líder como coro, saudando e aplaudindo — por isso eu digo: BASTA! Basta de sermos explorados, BASTA de sentirmos fome, BASTA de termos as terras habitadas por vermes indignos! E eu sei que vocês, meus irmãos e irmãs, vocês também dizem BASTA a toda essa mediocridade que assola a nossa nação.

Apoiando as mãos pelos azulejos que cobriam a parede da cozinha, levantei-me atentando para não escorregar no líquido ácido no chão imundo. Com passos vagarosos, fui caminhando até o meu posto, na antiga poltrona de couro tingido. Segurando-me firmemente nos braços de jacarandá, mantinha-me diante da tela determinado a enfrentar o enxame bélico.

— Assim como vocês, meus irmãos e irmãs, eu sei muito bem que o cidadão de bem, que os verdadeiros guerreiros da nossa terra, que os homens do campo, os trabalhadores das cidades, os pais de família, não aguentam mais serem explorados e humilhados diariamente. Nós não aguentamos mais isso, nós nos recusamos a continuar dessa maneira — o vespeiro voltava a revoltar-se ensimesmado —, por isso que eu digo, que o povo, o nosso povo, com as mãos calejadas e sofridas, tem de tomar essa tarefa com as próprias mãos; já que eles nunca o vão fazer, porque essa terra nunca foi, e nunca será, deles!

Alcancei o maço de cigarros sobre a mesinha de acrílico e acendi mais um. Batia as cinzas no cinzeiro de vidro de mais de vinte anos, observando os gritos e aplausos tomarem voo por entre a fumaça. Encarava-os e era encarado pelos marimbondos vérbicos, atentando para o além cortina, onde a nuvem de carbono e alcatrão não parecia tão densa. Onde o espetáculo se dava sob as luzes de tochas e postes de rua.

Fixava o olhar para a forma como proferia cada palavra, seus modos trejeiticos da performance, as vestes com que adornava o espetáculo … foi quando o notei. Testemunha resistente do tempo e da metamorfose. Quieto e gritante, assegurando sua autoridade de permanência.

Uma tragada funda e as vespas finalmente foram apaziguadas pela cortina de fumaça, que agora se abria em lembranças antes esquecidas. Momentos idos recalcados pela idade já avançada.

Não me lembro o exato ano, muito menos a estação. Mas naquele dia havíamos ido à rua principal para que buscasse algumas encomendas dos clientes. O serviço não era tanto, é verdade, mas havia um esforço entre nós para que tentássemos contribuir com os ofícios dos membros da comunidade. Levei-o à pedido da mãe. Disse que precisava trabalhar e criança na casa atrapalhava naquelas circunstâncias. De qualquer modo, não me atrapalhava; deixava ele ir ver algumas lojas nas proximidades enquanto tratava dos meus afazeres.

Depois de anotar as últimas encomendas de potes de conserva, encontrei-o diante de uma vitrine. Era um menino pequeno — menor que os demais garotos da sua idade — sempre despenteado e com redemoinhos pelo cabelo castanho. Quieto na medida do possível, mas uma boa companhia. Nunca deixei de vender um pote a menos de azeitonas ou um a mais de sardinha por seu feitio. Não comprometia os negócios.

De costas para mim, ele não percebeu quando o notei saboreando um chapéu de palha dourada que era exposta no mostruário. Não era dos melhores materiais, e mesmo a faixa que o adornava era bem simples … mas os meus preciosismos em nada diziam respeito ao brilhor com que o garoto namorava o chapéu de palha. De maneira nenhuma; seus olhos deglutiam a peça diante das possibilidades prometidas por tal acessório.

Decidi-me por presenteá-lo com a peça. Como única retribuição, pedi que utilizasse o chapéu ao máximo que a palha prometeria; fazendo-o de sua marca registrada, a assinatura que selava nossas vivências daqueles tempos, reminiscência das memórias em conjunto. E assim o fez, utilizando dele sempre que a ocasião permitia, e até quando lhe era vetado.

Honrou o combinado até a última vez que o vi. Naquele dia de inverno em que nem o afinco dos abraços da despedida, nem os longos apertos de mão de “boa sorte” faziam com que o frio cortante da serra diminuísse. Pensei que não viria. Que, como outras vezes, havia perdido a hora imerso em uma de suas leituras infindadas.

Não foi o (a)caso.

Chegou quando eu já estava acomodado na poltrona do ônibus. Nada mais apropriado, afinal, sempre reservou-se apenas aos momentos mais simbólicos. Nos despedimos enquanto o ônibus partia, já em movimento: eu balançando os braços com um terço do corpo para fora da janela; ele, de olhos marejados e pingos salinos, enquanto balançava o chapéu dourado por entre a fumaça do terminal e a terra vermelha levantada pelas rodas do veículo. Nunca mais o veria desde aquele dia. Nunca mais tinha ouvido falar sobre o chapéu e seus feitios de velhas memórias.

Mas agora eu o via.

Agora, de modo similar, balançava o chapéu por entre os dedos, contornando o ar, imerso na fumaça. Agitava-o para mim e para uma multidão que agitava de volta. Que o ouvia graciar a fala dura ao vento. Que urgia em pomposos ferrões que voltavam a me atacar o peito; a me arder os miolos, a me sangrar a garganta.

O via e me doía.

— Mas eu tenho fé meus irmãos. Eu tenho fé no passado guerreiro do nosso povo. Eu tenho fé na força que pulsa em nossos corações. Tenho fé em todos nós, afinal, somo todos um. Somos uma unidade compacta que enfrenta todos os inimigos da nossa terra da liberdade! E assim como vocês, tenho certeza que precisamos enfrentar esse inimigo, esse grande obstáculo. Pois, somente vencendo essa batalha, e eu sei que venceremos, que vamos alcançar o nosso lugar devido na história. O lugar que todo homem, mulher e criança de coração guerreiro merece.

Levantou o braço por onde já nasceu uma lágrima: recontornou o tecido da camisa de manga longa que trajava, marcando-a até desaguar no chapéu dourado que erguia ao público. A maré povoada erguia-se em chapéus comovidos. Era salgado o som das vespas, seus gritos, seus aplausos … suas asas batiam águas salgadas e diziam “adeuzzzzzz”.

Ouvi alguns barulhos na rua, o vento cantou a esquina, uma janela se abriu, um inseto foi esmagado, o motor de um ônibus arrancou na avenida, alguém se exaltou, o carro buzinou, uma garrafa se inflamou, um tiro ressou.

Elas estavam chegando.


***

*Giacomo Balla (1871-1958) foi um dos representantes do Futurismo italiano, movimento literário e artístico no qual muitos de seus artistas se identificavam com o Fascismo.

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