\\ CRÔNICAS
De quem é o lar que me abriga hoje?
Por Victória Novais
Existe um lar dentro de cada um de nós, nosso corpo e nossa alma são lares para nós mesmos e para quem permitimos entrar. A casa é uma extensão e materialização do nosso existir e, de maneiras sutis, a casa sempre tem um dono, alguém que recebe e que preenche aquele espaço de forma especial.
Ter a nossa própria casa é parte de um processo longo de amadurecimento. Nós nascemos sem casa e passamos as primeiras décadas da vida acolhidos por outros lares. A casa da infância não parece ser exatamente nossa, e de fato ela não é. Ela é temporária, passageira e regida por um sentimento maior do que nossa meninice consegue entender.
Visitei Nayani em uma noite comum de quinta-feira. Eu a conhecia por amigos em comum, mas nunca fomos devidamente apresentadas e aquele era estranhamente nosso primeiro encontro formal. Ela me recepcionou claramente cansada depois de um dia longo de trabalho, mas ainda sim com certa empolgação em me ver.
Ela abriu a porta do prédio e me guiou até seu apartamento que fica no primeiro andar do edifício. Da porta de entrada de sua casa, me guiou, passando pela sala e cozinha, até um pequeno pátio central onde estavam seu namorado e um de seus amigos com o qual divide a casa.
Nayani se apresentou muito calma, com a fala baixa e um pouco acuada. Me ofereceu um café, uma água e me convidou a sentar no pátio com as outras pessoas onde permaneci por alguns minutos em meio a tragos de cigarro.
Eu estava ali para entrevistá-la, bisbilhotar um pouco da sua vida doméstica e coletar alguns dados para a pesquisa que estava desenvolvendo. Durante esse processo, entrevistei diversas pessoas, em busca de símbolos que as conectassem com a seus ideais de lar. Ao todo foram 8 pessoas entrevistadas; 8 casas que me receberam e me acolheram para uma breve conversa sobre suas intimidades domésticas. E foi notório que de todas as casas de desconhecidos que entrei a dela foi a mais acolhedora.
Nayani me marcou porque foi a única que se emocionou durante nossa conversa. Ela realmente se entregou a minha proposta e confiou a mim memórias de grande valor emocional que, hoje confesso, não estava pronta para receber naquele momento.
Se emocionou lembrando da casa onde passou a maior parte de sua infância no interior do estado. O carinho com o qual me contava sobre a casa de sua avó me fez segurar o choro algumas vezes. A figura da avó era o centro de qualquer sentimento de lar que ela tinha, e tudo se intensificou ao lembrar que a avó havia partido há pouco menos de um ano.
Durante nossa conversa Nayani me contou sobre a falta de apego que tinha com a casa atual. Disse que, desde a morte de sua avó, não sentia mais que aquela casa era sua, mesmo sendo propriedade da família.
Era nítida a tristeza em seus olhos enquanto me explicava o porquê não se sentia mais parte daquela casa, e era natural que se sentisse assim. Sua avó lhe provia o lar que a formou e, embora agora seja uma adulta, Nayani não estava pronta para torna-se lar de si mesma.
A vida caminha para que um dia nós paremos de ser hóspedes e nos entendamos capazes de organizar nossa própria morada. Nem sempre essa é uma tarefa fácil - para não dizer que nunca é fácil - e nem sempre é uma escolha nossa.
Nayani é mulher dessas que querem uma vida tranquila. E, embora ela ainda não sabia, durante o breve momento em que estive em sua casa me senti acolhida em seu lar. Eu vi em seus objetos e na belíssima orquídea que pertencia a sua avó - e que ela cuida com tanto amor - o lar que existe dentro dela e que me fez estar em paz durante nosso encontro.
Foi muito significativo encontrá-la em meio a este processo construtivo de seu próprio lar. Primeiramente por nunca ter encontrado com ninguém na mesma situação e, depois, por ter a oportunidade de refletir sobre isso.
De quem é o lar que me abriga hoje?
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