\\ ENTREVERES
Precisa-se de 25 anos para ganhar um Jubileu de Prata, na Inglaterra, aqui, basta ser um Beija-flor na mocidade
Por Matheus Lopes Quirino
foto/divulgação
Entrei em um ônibus lotado, tornando-me ali mais uma sardinha que, dali a pouco, sairia fedorenta e amassada, como as de lata. Chovia fininho em São Paulo, o que sustou minhas intenções de apanhar um guarda-chuvas desses de camelô. Vestia um terno bem cortado, com camisa quadriculada e gravata preta. Parecia um banqueiro, um homem de negócios, ou, simplesmente, um jovem rico a sair por aí com paletó e cabelo esvoaçantes, já na saída do metrô da Consolação.
Pegaria o guarda-chuvas no guarda volumes do Instituto Moreira Salles, para descer a Consolação até uma lojinha de bugigangas naquele dia chuvoso, até que chegou uma mensagem. “Oi, vai fazer o que hoje à noite?”. E esqueci todo o primeiro parágrafo, esqueci que estava fedorento, amassado, cansado, com cabelos bagunçados. Esqueci da loja de cacarecos. Só não do guarda-chuvas (iria precisar, mais tarde).
Dali algumas horas, quando a chuva apertou, em frente a uma estante de “literatura estrangeira” tentava me equilibrar em um pé só. Mascava chiclete de canela e riscava o chão com o biquinho de madeira da ponta do guarda-chuvas turquesa. Andava em círculos ali, parava, tentava me equilibrar. Ajeitava a gravata preta de bolinhas. Tentava me equilibrar.
“O guarda-chuva te denunciou”. Disse a mim. E eu olhei para ele, o guarda-chuvas, e sorri meio tímido, meio feliz, meio bobo, olhando para o chão, para o guarda-chuvas, para ele. Saímos dali depois que a tempestade passou. Dezembro estava começando ali, naquele minuto, quando tirei a gravata no balcão de uma lanchonete que sempre achei simpática – e, agora, além de simpática afirmo que é gostosa!
“Você queria me mostrar a gravata, sr?”. Disse brincando bem na minha frente. De camisa de botões meio cinza, shorts e All-Star vermelho. Fiz que não, mas era verdade. Sim, odiava a gravata. Mas ela estava ali para ser vista. Para ser vista e, num ímpeto de negação, ser arrancada num reflexo feroz, algo que denunciasse meu descompromisso bem ali, naquele balcão, com os dedos sujos de molho e ketchup.
A gravata era só um pretexto bobo para uma conversa. Não precisaria ser ela o motivo. Realmente não era, talvez fosse o dia. Mas desconfio que não. Embolei-a com violência (sinal da incorrigível juventude), e dum pulo caíamos da gravata para um papo cabeça, sendo esta a de baixo, e de como o mercado das modelos da Victoria’s Secrets é um pesadelo. E de como há book rosa. E de como Freud estava certo e, no fim, um charuto não é um charuto. E acabamos engalfinhados em um lugarzinho qualquer, quando se quer e se faz.
Dali em diante decidi não mais usar gravata. Mesmo que da primeira vez, de fato, tivesse precisado por causa de trabalho. Aos poucos fui mostrando as blusas floridas. E descobri que talvez fossem os meus shorts uma compensação àquela gravata. Todos tropicalientes, com flores, frutas, pássaros e cores berrantes.
*
Numa dessas bermudas, há uma flor que se parece com o Lírio. Mas não é. Ela se chama Strelitzia Reginae, é da África do Sul e gosta de jardins tropicais. É uma flor bonita, laranja, com resquícios de azul escuro, quase violeta, quando não há um dégradé. Chama atenção esse lance de cores complementares. E a Strelitzia, popularmente, chama-se Ave do Paraíso, conhecida também como Ave de Fogo do Paraíso.
Talvez seja uma Fênix do reino Plantae ou simplesmente um beija-flor, com codinome, como cantou o Cazuza. Olhava para as samambaias dependuradas ali na sala. Ao fundo, janela aberta e as luzes da cidade embalavam um transe bem ali naquele chão de taco. As Fênix são imortais, fortes, famosas, personagens de filmes de franquias internacionais. As Fênix são as toda-poderosas. Indestrutíveis e prestativas, suas lágrimas curam. São leiais, etc.
Mas curiosamente coube a mim preferir o beija-flor. Justamente por sua característica frágil e mortal, embora também pertença ao paraíso dos pássaros (isso se não considerarmos a maravilha que é voar por aí, sem consciência de nada e sem boletos para pagar, carreiras para construir, amores para passar, versos para escrever, versos tristes).
Um Beija-Flor dura aproximadamente quatro anos, isso se a vida não for trágica com ele antes do esperado (inesperado?). Com sorte, alcançará a idade de ancião. Cinco anos. E depois disso fenecerá.
Em cinco anos este pássaro irá meter o bico debaixo da saia das flores, sugando-lhes néctar para sobrevivência. É um belo ciclo que, com extensa bibliografia, atrai jovens curiosos a se meter na vida de tal criatura, tentando classificar em matéria de ciência exata o que é complicado de se classificar, ainda se tratando de um beijo, entre duas espécies, nominalmente falando, incompatíveis. Um animal e um vegetal. No meio deles há um beijo para ser dado. E toda uma paixão se desenrola ali, por alguns segundos, conforme a vontade daquele ínfimo predador seja saciada.
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Penso ver um desses pássaros na mesma sacada, pela manhã. Meto a cabeça para fora da janela, só as pombas dividem os fios elétricos dos postes daquela rua caída. As plantas foram aguadas antes do sono. E havia um vasinho quebrado no chão, que passou despercebido entre um pra lá e um pra cá do bolero no chão de taco.
Ando pela rua observando flores e pássaros. Como um metido a ambientalista. Caso viva pouco mais de um ano, levando em consideração um beija-flor ancião – com cem anos. O passarinho fica na reta com o Jubileu de Prata, debutando os vinte e cinco anos.
E nada importa ao passarinho. A não ser voar, existir, beijar em quintais tropicais. Rasgar um apartamento como um intrometido. Ser finito e, embora caia em pranto, tenha sabido que alcançou o botão de flor dono do néctar mais doce. Do tecido mais bonito. Daquela coisa finita que está ali contigo. Admirando-se ao espelho da sala, ele não está sozinho. Está com seu Jubileu de Prata, em meio às samambaias, gravata preta, cachinhos, All – Star vermelho, aves e outras coisas que são do Paraíso e caíram por engano bem naquele apartamento.
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