\\ TERCEIRO SINAL
Tanto que aconteceu, que foi dito, pensado, tão pouco que foi registrado
Por Bruno Pernambuco
Tanto que aconteceu, que foi dito, pensado, tão pouco que foi registrado. Tanto que passou no espaço não mais que daqueles meros minutos, segundos, instantes absolutamente subtraídos, mas eram mais, eram muitos tempos em simultâneo; não um agora único, mas também um outro ansioso, que se adiantava, e também outro que não queria ir, preferia agarrar-se ao passado e às suas mãos firmes. Cada um que sabe qual a segurança e qual a ousadia que ama, até onde se arrisca e até onde fica- claro, ah, clareza oblíqua que brotava daquele dia. Cada saudade tem um nome, mesmo uma delas não é a mesma, sente-se saudade de muitas coisas ao mesmo tempo, ou então a saudade de um olhar, a saudade da graça, da gentileza que um dia se viu no gesto mínimo de alguém que no fundo no fundo se despreza, não deixam de dizer muitas coisas ao mesmo tempo; a saudade dos dedos caminhando pela pele, a saudade de uma lembrança, de uma invenção, de um sonho.
Não são nada impensadas as palavras, pensou, em sua rima tão exata. Não há de ser impensada nenhuma ordem que chega de El-Rei, não há de ser com indefinição, não feita sem serem levados em conta aqueles mínimos pormenores da vida na outra terra. Mi Manchi, agora, tamanha simplicidade que acordava a mente, acordava o coração, em sua obviedade, Mi Manchi como no francês, tu me manques, havia de ter restado ao português essa definição da saudade, tu me mancas, agora me pesa mais o lado onde está o coração e ele não caminha na mesma liberdade, em mim a lembrança cresceu e tornou-se seu próprio membro, enquanto caminho no presente algo de mim quer caminhar no passado. Do outro lado do dia, depois da janela suja, depois da tela, foi esse minúsculo encontro que restou no horizonte, sabia que ela também não tem nome, que ela também é ninguém. Era mesmo um dia de clarezas estranhas, tudo emaranhado, indecifrado, era só nalguma coisa, era naquela mínima agulha que caía atravessando a alma, naquele gole frio que o enchia de bolor frio, naquele rio, na flor nova, mesmo que feia, que germina após a terra arrasada, naquela pequena das pequenas lembranças que começava a decantar em água que restava algo a dizer. Indecifra-me. Conhece-me. Manca-me. Subitamente era uma visita profundamente estranha, de ter falado aquilo que estava pra ser. Olhou-se no espelho assustado, percebendo que dizia tudo aquele reflexo, estava ali, e era daquele exato jeito que era, aquela imagem havia sido entregue, feito o ingresso confirmado na entrada para a grande final.
Afinal era tempo, mais uma vez eram tempos, expirava fundo, parecia um tranquilidade, talvez não deixassem de ser, à porta da sala estava ele, o Grande, pelo menos o que haviam dito. Homem alto, certamente, a barba comprida, aproximando-se do cinza, os cabelos longos. Os alunos diziam que várias vezes vinham em seu professor uma figura graciosa, cuja descrição iam buscar nos arcontes. Tudo isso sumia no instante, feito o final da trilha do incenso. O ar tão denso, de onde se poderia alguém agarrar o canto daquele passarinho, atirar e vê-lo passando, não anunciava outra coisa que aquela vinda. Passaram-se as flores, mas chega a primavera, mais acolhida quando ninguém há a lhe esperar. Há certos momentos em que é quase natural falar com uma garbosidade, ou com um pedantismo, maior que o necessário- isso é dessas coisas que se descobre subitamente, e rindo. Talvez Camões soubesse algo a respeito disso ao escrever “mais anos serviria/ se não fora, para tão longo amor, tão curta a vida”.
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