\\ ENTREVERES
Dizia Otto Lara Resende “É preciso despiorar”, e geralmente é mesmo
Por Matheus Lopes Quirino
Certa vez a mulher do psicanalista Hélio Pellegrino, Maria Urbana, disse a Fernando Sabino que tentou contar a uma amiga uma história sua e não conseguiu. Atabafada, foi-se em busca do respectivo livro de contos para ler a história. E não havia outro jeito de contar aquilo senão daquele lá escrito. E Sabino – o autor do romance O Encontro Marcado, cujo Guimarães Rosa recomendou (a respeito da crônica) não fazer pães e sim pirâmides – então se regozijou do salamaleque, tanto é que repetiu a história, contando-a em um ou outro prefácio de livro seu. E com razão.
O próprio Sabino, tempos depois, assumiu: escrever simples é difícil, confessou isso ao jornalista e também cronista Ruy Castro, em uma roda viva de meados da década de 1990. Sabino escreve de forma límpida e gostosa, simples, serve biscoitos de polvilho a qualquer leitor. Passeia com sua prosa pelas situações mais hilariantes possíveis, entre a mineiridade e a carioquice, ele escreve com domínio da língua portuguesa, e isso nada tem a ver com não usar palavras difíceis – ou dita difíceis. Caso fossem elas “coisa de outro mundo”, ainda sim é papel do bom escritor saltar às estrelas para dar ao texto luminosidade, brilho especial, torná-lo palatável, no mínimo.
Na arte de narrar bem, cada palavra mostra a que veio, ou seja, não basta só escarafunchar, é preciso ter gosto por escarafunchar, fazendo-o na contramão das facilidades, dos lugares comuns, da mediocridade. Subestimar o leitor empertigado pelo comedimento é um ato covarde. Para que simplificar um texto com um sinônimo comum? Quando, à medida, existe uma palavra perfeitamente cabível para expor aquele sentimento, sendo ela esculpida por esta nossa última flor do Lácio, inculta e bela. Abre-se um universo quando se aprende uma nova palavra, uns dirão “é coisa de outro mundo”. E é mesmo.
Começando bem, segue-se um roteiro, precisa-se de um rito. À meia luz, sob a anônima intimidade de um espaço exíguo, entre cadeira e escrivaninha, debaixo do abajur de luz alaranjada. Da primeira frase tirada com muito esforço, ao desconforto dos três primeiros parágrafos. Ao fundo, o som da balada que lhe toca, puxando a cadeira ao ritmo, os dedos desgovernam em outras bandas. O texto toma forma, os contornos daquela face que em ziguezague vem à lembrança orquestram-se como sorriso, feito fictícia primavera que renasce no rosto de alguém, como bem disse Drummond naquela Tarde de maio. E dá-se logo um alfarrábio, até o sol nascer, caso haja inspiração.
Como diria Otto Lara Resende, é preciso “despiorar”. No truque da gaveta, depois das escuras: às claras. Lê-se alto para verificar ritmo. Caso uma boa alma esteja disposta, uma segunda leitura é sempre bem-vinda. A “coisa” começa a tomar forma. Há muita quebra de expectativa depois de uma noite em claro.
Passados os ardores e temores é chegada a hora da DR com o próprio texto. Nessa etapa, o escritor tende a regurgitar tudo que há de ruim, visivelmente exposto, terrivelmente saltando aos olhos na lauda. “Joga fora, joga fora”. Manda o próprio diabo no corpo, já puxando Raymond Radiguet. Mas Otto vem e intercede por nós. É hora de despiorar. “Não joga fora, reescreve”.
O fim está próximo. Mas antes deste, logo no começo, recomenda-se ao escritor desnudar a origem daquilo com que se trabalha: as palavras. É uma busca incessante, beirando a obsessão com cautela à demasia. Daí vem a importância de um Houaiss debaixo do braço, da leitura de Flaubert, Maupassant, Balzac, Tolstói. Os repertórios gramático-etimológicos que compõem tais obras são indeléveis ao léxico de seus leitores, sobretudo dos em formação – aqui vai um dos mais graúdos e apetitosos Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Johann Wolfrang Von Goethe –, colocando-os sob a verve de histórias inspiradoras. Pois, caro leitor, terás de ter fôlego, escrever bem é transpirar bem. A ponto da língua esparramar pelo chão, como um tapete vermelho desses de hotel cinco estrelas.
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