\\ ENTRELINHAS
Considerada a maior escritora argentina, obra de Silvina Ocampo revela a excentricidade e os incêndios de uma autora em disfarce
Por Giovana Proença
Uma grande fúria explode. Incontido, o incêndio se alastra por trinta e oito contos. No dia de Nossa Senhora, uma menina ateia fogo nas asas da amiga, as duas vestidas de anjo para a comemoração. Uma morte carbonizada, o corpo suspenso na banheira; essa é a imagem do conto “A Fúria”. Nas mãos da menina, uma vela. Por trás, uma escritora às escondidas, óculos escuros que ocultam a face, o fósforo em mãos.
A Fúria e outros contos revela Silvina Ocampo, a escritora em disfarce. A pena expõe a nudez visceral de uma mulher que não teme brincar com a brutalidade. Nascida em meio à aristocracia argentina, Ocampo chegou a estudar pintura com o cubista Fernand Leger em Paris. Suas relações, indissociáveis dela própria, a colocam em posição privilegiada nos círculos literários. Sua irmã, Victoria Ocampo era editora da Revista Sur, epicentro da inteligência cultural argentina na primeira metade do século XX. O melhor amigo, José Luis Borges e suas Ficções dispensam apresentações. Casou-se com Adolfo Bioy Cesares, união que estendeu-se até o fim de sua vida, aos 90 anos.
Viaje olvidado (1937), primeiro livro da considerada a mais célebre autora argentina, foi resenhado por sua irmã Victoria, que relatou o espanto de perceber uma pessoa disfarçada de si mesma. Silvina transitou entre a prosa surrealista, a realista e o fantástica. Esse último, gênero elevado na literatura latino-americana. "A nossa sociedade — global, multilinguística, imensamente irracional — talvez só possa descrever a si mesma com a linguagem intuitiva da fantasia" afirma Ursula K. Le Guin no posfácio da Antologia da Literatura Fantástica oraganizada por Ocampo, Borges e Bioy Cesares, publicada no Brasil pela Companhia das Letras.
Em sua Introdução à Literatura Fantástica, o teórico literário búlgaro Tzvetan Todorov define que o fantástico é produzido por acontecimentos que não podem ser explicados pelas leis do mundo familiar. Essa fuga da realidade conhecida, mesclada a aspectos da realidade sólida em suas facetas mais cruas, constituem o fantástico explorado pelo círculo de Silvina Ocampo. Da mesma forma que não há fuga na escrita ardente de Ocampo, ela também é capturada por todos os lados.
Entre Bioy Cesares, Borges e Victoria; Silvina é a quarta parede. Coube a ela derrubar, ou melhor, implodir. Os destroços levantam-se nas narrativas de A Fúria e outros contos. Não se engane, embora ofuscada pelos nomes que a cercavam, Silvina não é tímida. Ela grita e esperneia. Inflama, queima e arde. Comete delitos na máquina de escrever com a liberdade que só se experimenta quando ninguém está olhando.
Comparável à nossa Clarice Lispector, Ocampo cria narradores originais, flui a prosa como veneno escorrido. A aristocrata argentina veste a voz comum, e com ela destila a acidez, uma piada de mau gosto sempre parece estar na ponta da língua. Abusa de personagens extravagantes em situações estranhas, nada dentro da normalidade. Paradoxalmente, o resultado é leve. A autora afaga antes de matar. E depois ri. Os contos, em seus tons perversos e cruéis, têm um alívio, alguns momentos de respiro. Em “O vestido de veludo”, a cliente morre na vestimenta encomendada, enquanto a narradora pensa “Que divertido!”. Um divertimento aveludado.
A crueldade infantil e a semente do mal estão presente nos contos de Silvina Ocampo. Assassinos desfilam pelas páginas, muitos deles através de crianças. O crime é visceral, apresenta-se como forma de natureza. Foi assim e ponto. O fogo irrompe desde a capa de A Fúria e outros contos, na cabeça da mulher no centro, a porta em chamas. Sexualidade e paixões são exploradas em suas facetas mais excêntricas, flertando com o grotesco e a obsessão. O desejo arde entre as brasas da prosa passional da argentina, enquanto a ferocidade dança tango.
Silvina Ocampo é a fênix das cinzas do fantástico latino-americano e, acima de tudo, sua prosa marca um renascimento para o gênero. O fósforo de uma narradora em chamas a ilumina entre seus contemporâneos. Com as mãos na frente do rosto ao posar para a câmera, Silvina oculta-se como ato de liberdade. Segue sua escrita em fúria como se ninguém a capturasse, deixa a brutalidade pairar suspensa em leveza, habilidade da pena da maior escritora argentina. A porta em chamas na capa da edição publicada pela Companhia das Letras de A Fúria e outros contos, não esconde o incêndio. Mais do que nunca, novos leitores estão dispostos a se permitir queimar.
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