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Recebi um telefonema ridículo em uma hora descabida. Atendi. Desliguei. Matei-a por pensamento. Ao mesmo tempo ressuscitando, naquela de "perdoar pela sandice que não sabes dizer".

Por Matheus Lopes Quirino


O que a matava estava bem vivo. do outro lado da linha, ao telefone. E ela sentada numa muretinha, fustigada pelas intempéries da vida. Elas lá estavam, como uma escultura de Rodin se desfazendo pelo tempo que corre rápido pelos séculos. Neste tempo, a menina estava a discorrer não palavras, mas um rio. Do azinhavre ao puro sangue ruborizado naquelas maçãs do Éden. Nada importava ali, fruta nova e imatura, repleta de bichos e minhocas de dentro. Completamente guiada pelos impulsos e desejos, como quando o fruto é chamado pelo diabo pela gravidade. Ele cai e espatifa. E debaixo da gravidade ele está a espetar os corações, como um mancebo a fazer travessuras, não, como um próprio palhaço a entristecer a moça, ao telefone.


E ela já não mais falava palavra sã, apenas mexia o fino lábio com um murmúrio sôfrego implorando a morte. ããããããããã... queria atravessar a avenida e ser jogada para longe por um automóvel. queria ser enterrada para dentro de uma cova onde todos os bichos a fariam como um banquete e ela, tolinha, pensaria errado que sentaria à mesa, também.


"Menina, filha do bronze e do leite de rosa, aquieta-te debaixo dos muros desta terra vazia", ouvia ela. Em frente à faixa que dá adeus à Av. Dr. Arnaldo, margeando o cemitério rumo à Av. Pacaembú. Lá estava a pequena cria de deus, próxima do último contato com a parte que mais prezava, do outro lado da linha.

*

Eu queria apunhalar essa coisa que aqui dentro cresce como uma flor gosmenta, pegajosa e cheia de espinhos. ARRRRGH. Pensava ela. Morra! ARRRGH. E lavava a boca com água salgada do mar, engolindo o líquido que vazava pelos olhos. Arrependida, ela batia tão forte na porta de madeira que uma vizinha ligou preocupada. Ela se atirou no tapete turco da sala, ficou bamboleando o corpo como um invertebrado. ARRRGH. Era ciúme o nome daquilo. E mais do que ciúme. Era não saber ao certo o que era essa AAARGH. Coisa que pavimentava suas vísceras com asfalto quente e fedido.


*

Era uma música alta. Um ruído, na verdade. Meu deus, pare de tocar esse piano e me libere a degola de uma vez. Herbert saiu da torre descendo mil e quintos degraus da escada em caracol. Destrancou a grossa porta que há anos não era aberta. Andou por uma hora e meia até um abismo. Tirou toda sua roupa esgarçada, cheia de pulgas, aos farrapos. Tomou um gole de conhaque e deu adeus ao precipício. Foi a última canção triste.


*


Subi a Pacaembú com a garganta seca. Recebi um telefonema ridículo em uma hora descabida. Atendi. Desliguei. Matei-a por pensamento. Ao mesmo tempo ressuscitando, naquela de "perdoar pela sandice que não sabes dizer". Perdoei o que nunca havia começado. Aquele rancor era fictício. Era birra e nada mais.


Subi margeando o cemitério, procurando contar todas as estatuetas de bronze que podia ver. Chorava baixinho dentro da camiseta em um remoto lugar, uma sombra na avenida.

Minha mãe estava do outro lado do prédio, em algum lugar onde a morte habita e mantém em suas dependências seu perfume de calêndula-das-boticas.


Deus tocou meus braços com um olhar, em vão momento, naquilo que ia desatando, o sepulcro da carne. A vida pela frente. Todo o meu amor por ela, ali, deitada naquela cama, estirada no asfalto, esperando um telefonema. As últimas notas a dar a corda. Oh, céus! Era deus a chamá-la em vão momento, ligava a cobrar. Ela atendeu e continuou na linha da vida, até cair para sempre na escuridão.

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