\\ ANTENA
Felizmente, diversos coletivos e manifestações culturais continuam reverberando a importância de não ficarmos calados em meio ao caos.
Por Lia Petrelli
O Pantanal está em chamas, incêndios vêm causando devastação, mortes assolam nosso bioma e alertam para problemas climáticos mais graves.
Como se já não soubéssemos que tudo isso iria acontecer.
O Pantanal brasileiro é a maior área de planície alagada do mundo, mas desde junho vem queimando, pegando fogo, morrendo. Àqueles que veem o sol como principal perigo, certamente se esquecem do ser humano, do agronegócio e do governo extremista que ganha força ao redor do globo.
A quem já se esqueceu, Bolsonaro deixou claro que iria destruir o patrimônio natural do Brasil, e logo no começo de seu mandato começou com o plano assassino de extermínio da Amazônia. Vídeos que rodam a internet mostram o sadismo de pessoas que alastram o fogo propositalmente: garimpeiros montados em carros equipados com gasolina e álcool levam consigo a devastação do fogo às áreas não afetadas.
Como pode ser sem querer?
O novo normal carrega a culpa climática inevitável: o mundo pega fogo.
A pandemia já era alerta do mau uso do ser humano de seu habitat natural.
O egoísmo intrínseco coloca o Homem num pedestal invisivelmente irônico; a maioria não quer saber, o homem sabe, o homem faz, o homem mata.
Da forma que vejo, nós mesmos somos o vírus que mata o planeta.
Não é preciso ir longe para desvendar o macabro futuro que pouco a pouco se estabelece.
Quem já teve oportunidade de assistir Mad Max (James McCausland e George Miller, 1979, 1981 e 1985), pôde antever o que aguardavam os pensadores distópicos – por mais que pudéssemos pensar que o absurdo não se concretizaria, bastava que olhássemos ao nosso redor.
Os alertas sobre o desmatamento são gritados por todos os cantos já faz anos, mas quem é que se presta a ouvir? Certamente não as pessoas mais velhas que não estarão aqui para ver o horrível futuro que nos acomete – repito: estamos no topo do egoísmo viral.
O fogo não é novidade, por décadas e décadas os fazendeiros, garimpeiros e apoiadores do agronegócio usam as chamas para devolver nutrientes ao solo da forma mais barata possível, renovando o pasto desmatado para a produção de gado. Só neste ano o Pantanal queima quatro vezes mais o tamanho do maior incêndio da floresta Amazônica – que diga-se de passagem, também está queimando.
Apesar de o Pantanal ser menor do que a Amazônia, 150.000 quilômetros quadrados é morada de cerca de 1.200 espécies de animais vertebrados, incluindo 36 ameaçados de extinção. Ali é onde existe a população mais densa de onças-pintadas, que hoje vagam em dor pelo cenário apocalíptico, com patas queimadas e pulmões enegrecidos pela fumaça.
Num recorde mundial – que poderia ser anunciado por algum locutor de esportes, acompanhando o sadismo irônico do nosso braZil – 23.490 quilômetros quadrados foram queimados até 6 de setembro. Isso representa 16% do Pantanal brasileiro, de acordo com a análise da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Em agosto o portal turístico de Poconé, no Mato Grosso, queimou fazendo o solo chegar a 46,5ºC. É motivo para piada? Deve ser, pois Bolsonaro segue rindo e fazendo pouco caso de toda essa situação, até porque, quem será que está combatendo o fogo além dos locais?
Nós aqui sentados também não estamos, infelizmente.
A impotência da ação ecoa os mesmos gritos silenciados das carcaças de animais que sobram depois de comidas pelo fogo.
O Pantanal é conhecido por ser extremamente úmido, a planície inundável se enche de água durante a estação chuvosa (de novembro a abril), mas não foi isso que aconteceu em 2020.
Essa é só a pontinha dos problemas que se desencadeiam a partir daí: O Pantanal se localiza entre a floresta tropical, vastos campos do Brasil e as florestas secas do Paraguai. A água que evapora na estação seca o rio Paraguai, que corta o Pantanal, fez o rio atingir seu ponto mais baixo desde 1973, segundo Julia Arieira, pesquisadora de clima da Universidade Federal do Espírito Santo.
Especialistas e cientistas dizem que a seca acontece devido ao aquecimento do Oceano Atlântico, que fica bem acima do Equador; isso tudo faz com que a umidade da América do Sul viaje para o norte na forma de furacões e tufões, como os que temos experienciado nos últimos dias.
Segundo Doug Morton, da NASA, esse fenômeno é causado por mudanças da temperatura do oceano chamadas de Oscilação Multidecadal do Atlântico.
O fenômeno atinge tanto o Oceano Atlântico quanto contribui na formação do El Niño, do Oceano Pacífico. A Oscilação acontece a cada 2-7 anos com o El Niño, mas no Atlântico quente e frio demoram mais ou menos de 30 a 40 anos para se alterarem.
As águas vêm sendo aquecidas constantemente desde a década de 1990, isso contribui para as secas e incêndios sul-americanos. O derretimento das calotas polares eram avisos estrondosos, mas como sempre, a maior parcela da população preferiu ignorar os pedidos de socorro da Terra, continuando a produzir e fomentar o agronegócio ao redor do globo.
A constante crescente do aquecimento global desorganiza o ciclo natural da Oscilação Multidecadal, e Morton teme que isso faça ficá-la no estado quente permanentemente, contribuindo cada vez mais para os incêndios que vemos agora.
Em agosto, os incêndios na Amazônia atingiram o maior número em 10 anos, já na Argentina as chamas são as piores desde 2009.
O governo de Bolsonaro fez questão de enfraquecer a fiscalização ambiental no Brasil, mas a máscara de Messias ainda fez questão de ilustrar a nova célula de 200 reais com o símbolo o Lobo Guará, só mais um atrativo para inglês ver.
Em agosto de 2020 Guilherme Casarões publicou o registro dos bastidores do Sessão Plenária do Fórum Econômico Mundial, que aconteceu em janeiro de 2019, em Davos, na Suíça. O trecho faz parte do Documentário Alemão “O Fórum”, e mostra o vergonhoso diálogo entre Bolsonaro e Al Gore, ambientalista ex-vice-precidente dos Estados Unidos. Importante ressaltar que o presidente do Brasil só consegue se comunicar através de um tradutor, que volta e meia prefere não traduzir certas falas de Bolsonaro.
Logo no começo da conversa, o ambientalista comenta ser grande amigo de Alfredo Sirkis (1950-2020), jornalista, editor e roteirista de TV e cinema brasileiro, gestor ambiental e urbanístico e ex-parlamentar, além de ter sido Diretor Executivo do Think Tank Centro Brasil no Clima – ao que Bolsonaro responde “Lá atrás, fui inimigo de Sirkis na luta armada.”, provocando uma reação de surpresa de Al Gore que comenta sobre, mas é entrecortado por comentários de Bolsonaro dizendo “Eu sou o Capitão do Exército” afirmando que a história militar no Brasil foi bem mal contada, comentários estes que seu tradutor não fez questão de traduzir.
Al Gore comenta que todos estão extremamente preocupados com a situação da Amazônia, ao que Bolsonaro responde “A Amazônia não pode ser esquecida. Temos muitas riquezas, e gostaria muito de explorá-las com os EUA.”, ao que é respondido: “Eu não sei muito bem o que você quer dizer com isso”, logo depois Al Gore deixa a roda de conversa.
Que vergonha.
Em abril de 2020 o vídeo da reunião ministerial, divulgado pelo ministro do STF Celso de Mello, mostra Ricardo Salles explicando perfeitamente o que Bolsonaro quis dizer com isso ao afirmar que o governo deveria aproveitar “a oportunidade trazida pela pandemia do COVID-19”, para mudar as regras ligadas às proteção ambiental e à área da agricultura para evitar questionamentos na Justiça.
Dentre os horrendos comentários diários, a frase icônica vem sendo repetida e afirmada dia após dia: O governo está mesmo passando a boiada.
Apesar de Salles ter visitado o Pantanal em agosto, dizendo que as agências ambientais federais enviaram cinco aeronaves e funcionários adicionais para ajudar os mais de 100 bombeiros estaduais que combatem as chamas, o Ministério do Meio Ambiente continua não respondendo a nenhum pedido de auxilio para o combate aos incêndios, fazendo com que organizações ambientais e população local tenham que contribuir voluntariamente para o combate ao fogo. Hoje, dia 14 de setembro, os estados decretaram calamidade.
Os guias locais que trabalham com a equipe de resgate andam com os pés afundando nas fuligens. Em Poconé, cobras são vistas mortas a cada poucos metros, uma delas encontrada por Eduarda Fernandes estava petrificada pelo fogo, tendo mordido o próprio corpo o que, segundo os biólogos, é uma reação involuntária do animal para escapar da dor.
Entendendo que o pouco caso do governo diz respeito à desinformação da população, na contração dessa campanha nefasta, algumas pessoas têm se motivado para trazer o conteúdo sobre alertas nos mais diversos formatos, como é o caso da produtora independente Editora Elefante, que continua produzindo obras que falam sobre o ambiente contemporâneo.
Em junho de 2020, a editora publicou Pandemia e agronegócio: doenças infecciosas, capitalismo e ciência, de Rob Wallace, que conta sobre a pesquisa que busca superar a cisão entre ciências humanas e naturais por meio da crítica radical ao modo de produção capitalista aplicado às atividades agropecuárias.
No livro, as pandemias mundiais aparecem intercaladas a informações sobre as produções do agronegócio, mostrando como os “desastres naturais” são em verdade os reais e letais resíduos produzidos pelas operações agroindustriais.
Junto à editora Igra Kniga e a Rachel Pach, Elefante trouxe o livro ao Brasil através do esforço de numerosas mãos. Allan Rodrigo de Campos Silva trabalhou diuturnamente para traduzir seiscentas páginas em menos de dois meses. A força-tarefa conta com a produção conjunta de Daniela Alarcon, Fabiana Medina, Natalia Engler, Mariana Zanini, Laura Massunari, Tomoe Moroizumi, João Peres, Jarina Pena da Mata, Denise Matsumoto, Bianca Oliveira, Tadeu Breda e da Revista Comando.
O principal objetivo da equipe é que os textos de Rob Wallace ajudem a população brasileira a perceber e fomentar o debate sobre os modos de vida que podem destruir culturas, espécies e vidas humanas.
O trabalho da editora, de importância histórica, marca o travamento da luta da produção independente para barrar os efeitos desastrosos que o governo vem impondo a cultura, preservação e saúde brasileiras (porque também sabemos dos planos malucos de taxação de livros, né?)
Felizmente, diversos coletivos e manifestações culturais continuam reverberando a importância de não ficarmos calados em meio ao caos.
O Solar dos Abacaxis, localizado no Casarão do bairro Cosme Velho, no Rio de Janeiro, segue desde 2016 revitalizando espaços de projetos culturais independentes, através da coletividade.
O local, quase em ruínas, foi fundado e revitalizado por inciativa de Bernardo Mosqueira (curador), Adriano Carneiro (arquiteto), Maria Duarte (produtora), Bruno Balthazar (educador) e Ulisses Carrilho (curador), abrindo portas para pensamentos artísticos, já que segundo Bernardo, o Solar “é um modo de pensar e fazer cultura.”
Fruto da colaboração de artistas, mestres, interlocutores, musicistas, curadores, advogados, dançarines, visitantes e parceiros que se propõe a entregar um pouquinho de si para a construção coletiva, o ambiente segue sendo a representação do encontro de lutas, desejos, reflexões e manutenção da cultura independente.
O projeto ativista Local da Ação, desenvolvido com os recursos doados para o Fundo Colaborativo Emergencial para Artistas e Criadorxs (FunColab, que permanece aberto para doações), teve seu início no dia primeiro de agosto, é resposta ao terror político e ideológico que ataca diariamente o povo brasileiro. Na contra mão disso tudo o projeto defende a vida em sua plenitude, a liberdade, a diversidade, a cultura e a democracia através de novas formatações de lutas coletivas.
O projeto convidou 3 coletivos para elaborarem intervenções urbanas em 3 locais diferentes do Brasil. Cada coletivo desenvolveu táticas próprias de intervenções sociais que ecoam simultaneamente na cidade e no virtual.
O título, inspirado pela série homônima de Anna Bella Geiger, relembra as gravuras e vídeos passagens para possíveis “locais de ação” durante a ditadura militar.
Já participaram do projeto o Coletivo Carni – Recife, PE –, a Galeria ReOcupa – São Paulo, SP – e encerra os trabalhos agora com o coletivo Tupinambá Lambido – Rio de Janeiro, RJ.
A iniciativa Local da Ação concentra campanhas de ações estético-políticas que, segundo Jorge Vasconcellos e Mariana Pimentel, configuram táticas que se colocam diante das urgências da atualidade. Artes desse tipo nascem na contra mão do mercado, aderindo a proposições anticapitalistas que aspiram ao anonimato. Ações estético-políticas são “artes sem artistas”, pois podem ser realizadas por qualquer pessoa.
O incentivo dialoga com artes performáticas ou performativas, mas vai no sentido oposto à apreciação da fama, como vemos acontecer dentro do mercado da arte.
Ações estético-políticas podem confundir os conceitos de arte, protesto, crime. São bordas e fronteiras de risco, a meu ver, extremamente necessárias nos tempos atuais.
Dia 10 de setembro os lambes do coletivo Tupinambá Lambido encheram as ruas do Rio de Janeiro de um colorido que denuncia o descaso governamental, colados por toda a cidade durante a noite, os lambes têm o objetivo de “alegrar as ruas da cidade, tão entristecida por homens que só pensam em negociatas.”, como descrito nas imagens divulgadas pelas páginas do Instagram.
Apesar de a situação de calamidade brasileira ser extremamente desmotivadora, encontro apoio para acreditar em futuros possíveis quando percebo a produção independente assumindo a frente da educação do país, que mais parece largado pelos que deveriam ser responsáveis pelo bem estar da população.
Você acha que esse calor todo vem de onde?
Pelo que tenho visto, cada pedacinho que queima no Brasil reverbera nos corpos ativos-potíticos-contemporâneos, àqueles que não vão se calar diante da injustiça que recaí como obscurantismo. As produções coletivas me parecem ser a melhor saída para ultrapassarmos períodos como estes, que inevitavelmente continuarão se repetindo durante a história humana, mas acredito completamente no Esperançar de Paulo Freire, que não vem da espera, e sim da nossa própria capacidade de organizar ações no presente para criarmos futuros possíveis.
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TUPINAMBÁ LAMBIDO: Grupo artístico de lambe-lambe do Rio de Janeiro.
COLETIVO CARNI: Abiniel Nascimento, Ana Lira, Ariana Nuala, Caetano Costa, Gi Vatroi, Iagor Peres, Kalor Pacheco, Kildery Iara, Leticia Barros, Lia Letícia, Mário Miranda e Victor Lima.
GALERIA REOCUPA: projeto artístico de gestão compartilhada na Ocupação 9 de Julho com o MSTC - Movimento Sem Teto do Centro, em São Paulo.
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