\\ ALEXITIMIA
É muito complicado você não só expor essa intimidade, como também vestir essa intimidade e assumir: você está publicando o seu trabalho para o mundo! Uma vez que está no mundo, pode parar na mão de qualquer pessoa
Por Lia Petrelli
Ler Layla Loli é como denso mergulho nas entranhas de si. A História do Gozo e Outros Canibalismos fala da sexualidade socialmente renegada, a qual nossos corpos todos estão fadados a sustentar. Não podemos ler Layla desatentamente, isso porque, essencialmente, o livro é a autêntica veracidade do que o compõe enquanto corpo e, sendo assim, não poderíamos deixar de participar desta composição, que se estende para além da autora, se materializando em diversas linguagens, como seus versos e as fotografias que ilustra esse volume. É preciso entrar na leitura tal qual entramos em uma sala cheia de espinhos pontiagudos, com devida atenção para não se machucar, tendo plena noção de que, com a dor, foi o próprio pé ao encontro dos espinhos, nunca o contrário.
O livro parece dar voz à consciência contemporânea, que nos arrasta para pensar sobre comportamentos sexuais planejados, esperados e ensinados. Como em labirintos de linguagem que antes impediam a compreensão de fluir sem destino, a dança-escrita-corpo-estrutural pede para ser balançada. Afiadas, as palavras parecem ter sido escolhidas a dedo para afastar os desinteressados e atiçar os famintos. À primeira vista, com olhar radical, ouvimos as vozes das mulheres todas lutando para sobreviver com pensamentos politicamente renegados. Comportamentos sociais são claros e Layla grita por isso a céu aberto, decisivamente provocativa, atingindo inúmeros lugares de uma só vez, com o que parecem ser os dedos individuais de todas as mãos femininas que clamam por voz.
Percebo que quando as pessoas pegam para ler poemas meus, que são quebrados, elas têm muito mais dificuldade em encontrar ali um ritmo que ela julga adequado. Tem gente que até vem me perguntar “Ah, mas é assim que lê? Tá certo isso aqui?” – em questão de ritmo mesmo, não em questão de pronunciar as palavras –, e eu sempre fico “Cara, não sei, para mim o certo é o que está certo para minha loucura, e na sua loucura vai existir uma forma correta, também.
Poeta, atriz, artista plástica e dramaturga, Layla sabe bem como envolver aqueles que não entendem o gozo só pela imagem que emana. O carnal abre espaço para os outros lugares de atuação, mas sem antes participar explicitamente do desejo, movendo as imaginações através de tudo aquilo que ultrapassa palavras e encontra liberdade de gozar com figuras bem descritivas – contrastadas por fotografias analógicas da artista que, hora ou outra, nos surpreendem dentro do livro.
Layla saúda a revolução do sujeito que tenta se adaptar ao mundo contemporâneo se esquivando indevidamente de sua natureza. Como manda nas entrelinhas, as excitações borbulham o corpo, se convertendo justamente no gozo do encontro de tamanha sensibilidade intelectual. Seu erotismo mostra a que veio e assim podemos, com bastante cuidado, desfrutar de suas memórias escancaradas, se estivermos dispostos a encarar o âmago da feminilidade contemporânea. Temos muito a aprender com outros tipos de canibalismos, os tantos habitados por palavras, modos, estruturas.
Foi no domingo chuvoso pós-carnaval que me encontrei virtualmente com Layla Loli para entender melhor a abordagem artística da História do Gozo e Outros Canibalismos.
FRENTES VERSOS: Seu livro é multigênero, você aborda várias questões ao mesmo tempo: o feminismo, o aborto, a estrutura social, até a psicanálise.
Depois de o ler, tive vários insights, comecei a ver as coisas de uma forma bem diferente.
A primeira sensação foi, sem dúvida, a expressão política dentro dele. Pensamentos muito fortes sobre a liberdade sexual, não só da forma convencional que, socialmente, acordamos em ter.
A segunda sensação, numa segunda leitura, foi a de estar preparada para digerir essas informações e olhar mais profundamente paras imagens que você compõe nos poemas. Quase como houvesse um tempo de gestação poética dessas ideias.
Qual foi sua experiência de ter tornado presente, justamente aquilo que está ausente - já que você fala sobre o aborto?
Layla Loli: Sobre a construção das presenças, achei muito interessante essa forma de olhar, porque nunca havia considerado. Acredito que isso se deva muito por conta do meu contato com o teatro.
Eu venho do teatro, das artes cênicas e a minha matéria-prima, hoje, é também a dramaturgia. Então acredito que no processo do livro eu acabei adotando muitas ferramentas, muitos métodos da dramaturgia, mesmo que inconsciente para a construção de alguns discursos, ou de todos os discursos [risos].
Para além disso, o livro tem um lugar da intimidade, mesmo que tocando pautas políticas.
Houve momentos em que eu também precisei decodificar, assimilar, construir ou reconstruir algumas imagens pra mim mesma. Então, antes de saber exatamente o que eu queria falar com o poema, eu construía a imagem para mim mesma. Antes de ser para o outro, que vai ler em um segundo momento, eu sinto que foi uma construção de ideias meio que ao vivo.
Não acredito que valha o choque pelo choque, uma iconoclastia desenfreada, só pra chocar o outro, só para incomodar. São armas também, claro, hoje são ferramentas de resistência, de ter voz, de dar voz, mas não acho que caiba sair mostrando imagens e reproduzir discursos chocantes, que chocam os nossos “opositores” (entre várias aspas), se não temos uma mensagem muito bem delineada que queremos passar com aquela ação.
Sinto que podem ser coisas relativas. Coisas que para mim são muito nítidas (tem imagens que para mim estão muito presentes nos poemas), e que para outras pessoas são tidas como algo completamente distante, mas vou considerar essa visão sócio-política.
FV: Todas essas abordagens têm um ponto em comum que tem muito a ver com o corpo-privado que se torna corpo-público, já que o próprio corpo do poema diz muito sobre ele. Como foi externalizar a vontade de revelar sua intimidade, mesmo que de certa forma velada?
Loli: : Sim. Acredito que uma das principais características do livro seja esse trânsito entre o público e o privado, tendo o corpo como centro, núcleo, dessa discussão. Mais precisamente o corpo-fêmea, que é como eu me refiro aos corpos femininos cis gêneros no livro. Quando se escolhe tratar o abortamento, por exemplo, é muito complicado escolher como, fazer isso com delicadeza, uma vez que é um tema essencialmente de saúde pública, então é sim um tema público. Mas muitas vezes acabamos esquecendo que antes de ser público, ele é um tema privado, porque carrega infinitas camadas de intimidade, de subjetividades.
Tiveram momentos no processo de construção do livro que eu tive que eleger, tomar algumas decisões de como eu faria para que o público e o privado não se anulassem, ou não sufocassem um ao outro – pensando no livro enquanto produto.
Enquanto eu tratava do abortamento no lugar público, enquanto um discurso mais político, mais de ativismo, mais debochado, mais revoltado, tudo estava mais sob controle, por assim dizer. Até o momento em que eu resolvi dar um passo a mais e me colocar como o agente privado dessa temática, como uma personagem dessa auto-ficção que eu estava construindo. Aí as coisas começaram a ficar muito mais delicadas, dolorosas, complexas.
Houve até situações em que eu não conseguia finalizar um poema, porque toda vez que eu o pegava, eu começava a chorar. Escrevia uma linha, chorava e chorava, até o caso de eu ter que ligar para alguns amigos, que também escrevem, e falar “Olha, o quê que eu faço nessa situação? Isso é um sinal de que 'porra, esquece essa poesia mesmo', ou eu tô chorando e tô sofrendo tanto - isso tá sendo tão dolorido, justamente porque eu preciso dizer algo com aquilo, nem que seja só pra mim mesma, mesmo que não vá pro livro, depois”.
É muito complicado você não só expor essa intimidade, como também vestir essa intimidade e assumir: você está publicando o seu trabalho para o mundo! Uma vez que está no mundo, pode parar na mão de qualquer pessoa.
O mais complexo, não só assumir essa intimidade, mas como assumir que é uma intimidade sua, antes de qualquer coisa, se colocar como uma protagonista daquele ambiente privado que você está mexendo, colocando dedos em feridas, e ainda equilibrar isso, com o público, né? Afinal de contas, é uma obra. É um objeto de cultura.
Acho que essa dinâmica requer um equilíbrio entre os dois lugares, porque acredito que se fica muito só no privado, também não chega no outro. Então, é saber justamente costurar esses caminhos: de tocar na intimidade do outro.
Você tem que, primeiro, tornar o seu privado público, para que ele possa novamente se tornar privado para o outro. É como se fossem três tempos.
FV: As formas que seu livro adquire falam sobre o momento político atual, que tem se inclinado para o conservadorismo. Nesse sentido, acredito que A História do Gozo e Outros Canibalismos tenha uma voz de resistência bem forte, trazendo discussões importantíssimas. Você pensa que a sociedade precisa daquilo que ela rejeita?
Loli : Sim, eu acredito que sim, e é algo que eu pretendo levar não só para minha poesia, mas muito também para o teatro, o audiovisual, porque acho extremamente necessário que sejam reveladas todas as possibilidades para que a gente possa escolher a que melhor nos cabe. Junto a isso, é um processo extremamente delicado, que tem que ser muito bem elaborado, pra que a gente não tenha efeito rebote.
Não acredito que valha o choque pelo choque, uma iconoclastia desenfreada, só pra chocar o outro, só para incomodar. São armas também, claro, hoje são ferramentas de resistência, de ter voz, de dar voz, mas não acho que caiba sair mostrando imagens e reproduzir discursos chocantes, que chocam os nossos “opositores” (entre várias aspas), se não temos uma mensagem muito bem delineada que queremos passar com aquela ação.
No caso do livro, quando eu trato do abortamento, da sexualidade feminina, que vai pra além do erótico, acho que em alguns momentos resvala muito no pornô, mesmo, numa coisa mais crua, que é obvio, algo hoje ainda rejeitado socialmente, ou até mesmo quando eu falo do amor romântico, mas que ainda assim, não é o amor convencional, o amor normativo. Tudo são decisões. Primeiro é se considerar o que você quer expor, por que você quer expor aquilo e como você pode expor de forma produtiva, de forma que vai fazer pelo menos sentido, que vai, no mínimo, ser leal com a mensagem que você quer passar, mesmo que a mensagem não chegue de fato.
Ser leal com sua intenção em expor algumas coisas que sabemos, pelo menos num primeiro momento, que vão ser rejeitadas, vão ser vistas com repulsa. Para alguns assuntos, nem sempre o choque, o desvelar dos medos da sociedade pode ser a melhor opção. Nos tempos que estamos vivendo, acredito que sim, é uma das ferramentas, das nossas armas mais fortes: tanto de defesa, de preservação, quanto de contra-ataque. É necessário saber como fazer, até pela preservação de si mesmo e do discurso, para que nosso discurso também não seja corrompido em prol de uma estética.
FV: Bom, agora você tocou em questões muito importantes: Quando lemos seu livro, é muito claro a sua abordagem multifacetária dos assuntos abordados ali, tanto em termos poéticos, quanto técnicos. Imagino que isso tenha a ver com suas diversas funções no meio cultural, já que você é poeta, artista plástica, dramaturga, atriz. Você pensa que o termo “artista multimídia” explora exatamente essas questões que você traz, ou a singularidade de cada parte desses nomes tem uma potência unificada?
Loli: Acredito um pouco nos dois. Gosto muito do termo artista multimídia, por conta dessa pluralidade de tecnologias e linguagens, que temos hoje e acho que é um termo que dá conta de forma muito pontual dessa pluralidade e movimentos loucos que fazem os artistas hoje em dia. Somos quase que obrigados a dar conta várias áreas, de várias linguagens, de várias ferramentas, então acho importantíssimo. Gosto muito do conceito, e utilizo vez ou outra [risos], quase que sem querer. É um lugar que também requer um certo cuidado porque é um termo que vem sendo empregado, também, de forma cada vez mais genérica, menos cuidadosa, acho que é um ponto a se considerar. Ao mesmo tempo, eu também tenho muito apreço por essa singularidade dessas outras categorias, dessas outras áreas. No meu caso, não acho que são dissociáveis as minhas áreas de atuação. Eu não acreditaria na minha dramaturgia, se não fosse minha poesia; como eu não acreditaria na minha atuação, se não fosse minha dramaturgia, e por aí vai. Mas é porque eu mesma fui trilhando um caminho consciente, fui migrando de uma área pra outra, de forma muito planejada, com o que eu queria que se tornasse a minha produção, com o tipo de artista que eu queria ser.
FV: Ainda bem que existe hoje em dia essa necessidade contemporânea de alcançar diversos lugares, misturando, mesclando, parece ser o movimento mais gentil que a democratização pode ter no âmbito cultural: misturar percepções sobre um mesmo tema.
Loli: Total, acho essa democratização de ferramentas, de linguagens essencial dentro da arte, da cultura, principalmente no nosso Brasil vinte-vinte.
FV: O que representa para você a finalização do livro? Ou melhor, ele está finalizado?
Loli: Não vou saber te responder isso com exatidão.
Eu sei que não pretendo trabalhar pontualmente essa mesma temática, pelo menos esteticamente não da mesma forma, mas acredito que o corpo sempre vai estar presente, sempre vai ser o protagonista na minha produção, e o feminino também. Mas não acredito numa continuação desse livro, não enquanto livro materializado, talvez ele se torne uma performance.
Hilda Hilst, que acho que nem precisa falar, é nossa desbravadora, quem abriu o matagal para gente – fiquei até arrepiada aqui! [risos]
Existe uma peça que estou escrevendo, que o eixo temático é o mesmo do livro – embora não venha diretamente do livro –, e alguns discursos são muito semelhantes, porque foram escritos quase que ao mesmo tempo, apesar da peça continuar sendo escrita. Mas o segundo livro que eu também já comecei a movimentar, a escrever uma coisa ou outra, a eleger um poema ou outro, também aborda muito o feminino, também o lugar do afeto, da intimidade, mas ele não é explicita, assumidamente uma continuação desse livro.
Principalmente porque A História do Gozo pra mim foi quase uma missão de vida, sendo bem dramática [risos] e bem clichê. Foi algo que eu tinha que finalizar concretamente, sabe?
Foi uma promessa que eu fiz pra mim mesma, em que eu trabalharia comigo mesma os assuntos que estão ali tratados, pra que assim eu conseguisse encerrar um processo de luto que eu estava vivendo, e acho que dei conta disso quando o livro veio ao mundo e mais do que quando ele veio ao mundo: quando ele passou a ser lido, passou a gerar movimento, quando passou a existir troca. Para mim o livro foi encerrado aí.
Em questão temática, em questão estética, talvez ele ainda tenha alguns apêndices, não sei se necessariamente como livro, ou enfim, como produções em outras linguagens.
FV: Uma vez você comentou comigo que prefere que outras pessoas leiam seus poemas, você saberia verbalizar porquê isso acontece?
Loli: Sim, eu reflito bastante sobre isso. Acho que tem muito a ver com a construção estética dos meus poemas.
Percebo que quando as pessoas pegam para ler poemas meus, que são quebrados, elas têm muito mais dificuldade em encontrar ali um ritmo que ela julga adequado. Tem gente que até vem me perguntar “Ah, mas é assim que lê? Tá certo isso aqui?” – em questão de ritmo mesmo, não em questão de pronunciar as palavras –, e eu sempre fico “Cara, não sei, para mim o certo é o que está certo para minha loucura, e na sua loucura vai existir uma forma correta, também.
Acho interessantíssimo isso, porque eu percebo que se abrem pra mim diversos novos universos, porque vira algo quase ritual. Eu construo os poemas esteticamente levando muito em consideração o ritmo, quase que como conduzir uma cena, o ritmo de uma cena: “Aqui eu quero que tenha uma atenção, já aqui eu quero que tenha uma pausa dramática, ali eu quero um silêncio, lá eu quero um grito, aqui eu quero um susto.”
E é muito engraçado ver como as pessoas interpretam essas entrelinhas, essas subjetividades, de algo concreto, de algo gráfico ali frente. E muito também dos temas, acho muito bonito alguns homens que eu amo, alguns amigos lendo poemas meus que tocam em lugares tão femininos, e compreender algumas coisas, ou não compreender e me dispor a trocar ideia. Ou quando mulheres se sentem contempladas por algo que para mim foi muito doloroso de escrever e de conceber.
Acho isso muito mágico, é o cerne do fazer artístico é isso: saber que chegou no outro de alguma forma, mesmo que de uma forma cheia de dúvidas, meio abstrata, mas sentir esse movimento, essa troca, para mim é o que faz valer esse meu desejo, esse meu apreço de ver os meus poemas na boca das outras pessoas.
É uma forma de desmistificar essa minha produção, de descentralizar, de tirar um pouco do ego, e saber desses movimentos mesmo, redes de trocas, por mais efêmeras que sejam. É essencial, quase basilar para qualquer tipo de produção artística.
FV: Durante a trajetória de construção do livro, você pensava sobre o desdobramento que ele teria, em termos de publicação, estética, ou isso veio em conjunto (diagramação, escrita, revisão)?
Loli: Então eu sempre brinco que A História do Gozo é um livro que nunca quis ser um livro. Quando eu tomei a decisão de transformar um conjunto de poemas que eu já tinha e agrupá-los, como um pontapé inicial, para seguir o processo de escrita e poder fechar mesmo uma obra completa, eu já tinha alguns desejos estéticos, eu já sabia mais ou menos a cara que eu queria que tivesse; mas de forma geral eu sempre digo que é um livro muito processual.
Tive a sorte de encontrar o Tiago e a Débora, que foram meus editores, da Mocho – eles foram extremamente flexíveis e abraçaram todas as minhas loucuras, frearam outras a tempo.
Todas as decisões foram tomadas muito conjuntamente, todas muito em detrimento da outra, muito horizontal, digo, as necessidades do livro eram sempre muito horizontais entre si. E achei isso muito legal, muito bonito, amo o resultado, não só em questão de conteúdo, mas também a estética do livro.
Em contrapartida, os desdobramentos do que seria a publicação sempre ficaram muito no abstrato. Primeiro porque como artista independente é necessário, claro, que a gente tenha uma autoestima, uma certeza, uma segurança (inclusive, acho que a autoestima do artista, da artista é algo que deveria ser muito mais discutido, receber muito mais atenção), então procurei muito me apegar a isso: “Vai ser legal, vai dar tudo certo, estou confiando no que faço”.
Mas também teve um lugar de incerteza muito forte, até pelos assuntos tratados: como é que eu poderia equilibrar assuntos densos, pesados, alguns que poderiam até ser lidos como apologia a crimes, e equilibrar isso com toda uma estética, com uma linguagem artística? Na minha cabeça era muito difícil ter isso de forma concreta: o que poderia acontecer com essa publicação? E eu ainda estou vendo se desdobrar, ainda estou vendo os movimentos acontecerem e estou muito feliz até agora com o que foi essa publicação.
FV: Quais as suas maiores inquietações literárias, os temas, escritores...?
Loli:: “Inquietações literárias”! Adorei o termo e nossa, acho que são diversas, eu poderia passar horas conversando sobre isso.
Em questão das minhas referências, acredito que desde eu passei a me levar a sério como escritora, eu passei quase que exclusivamente lendo a produção de mulheres. O que me abriu a janela desse mundo da poesia foi Roberto Piva, mas quando era bem mais novinha, aí foi aquele deslumbre pela poesia marginal e a rebeldia e os anjos, e as praças, e a cidade de São Paulo! Até o momento que eu percebi que mulheres também faziam o que aquele boy fazia, e até melhor! Né, algumas até melhor, então eu passei a consumir essas produções.
Tenho dedicado uma pesquisa para a Poesia Confessional, que dialoga muito com essa categoria: esse grupo de mulheres escritoras que se suicidaram e que, por coincidência, ou não, as produções são as que eu mais gosto, mais amo, mais consumo.
Claro, eu não acho que seja totalmente ao acaso [risos], mas julgo em questão do discurso dessas mulheres né, algumas vivendo em locais e épocas, e vidas completamente diferentes, mas ainda assim, a vida delas teve um caminho muito parecido. E a produção, às vezes, também, em questão de temáticas abordadas, enfim.
A Silvia Plath, por exemplo, é uma referência basilar para mim, tanto pela trajetória de vida dela, tanto pela produção dela. A Redoma de Vidro, que agora está super se popularizando e eu estou achando ótimo, porque é um livro lindíssimo. Com certeza está nos meus top 5, de cabeceira.
Diane di Prima, Memórias de uma Beatnik, também foi um livro que me arrebatou, que eu já li trocentas mil vezes, e todas as vezes parece que é a primeira vez que eu estou lendo... Anne Sexton, Ana Cristina César, Virginia Wolf – inteligentíssima, maravilhosa, que mulher é aquela! – Hilda Hilst, que acho que nem precisa falar, é nossa desbravadora, quem abriu o matagal para gente – fiquei até arrepiada aqui! [risos]
Diversas mulheres! Que não vou ser capaz de lembrar agora, muitas contemporâneas, a Natasha Felix, tenho lido muito. Julia Vita, Aline Bei, Letícia Bassit. Infelizmente, conheço mais as mulheres do sudeste, porque acho que minha produção acaba ficando muito focada aqui e consequentemente o que eu consumo, também para alimentar minha produção. (Não que eu esteja justificando, estou falando como é um problema que eu quero resolver mesmo [risos]).
É sempre esse eixo dessas mulheres, malucas e criativas, e frenéticas e geniais, tanto como referências na vida, como coisas que eu consumo, enquanto personalidades que me intrigam para questões políticas que existem até hoje. E aí vem as minhas inquietações desde: o que é o mercado editorial hoje; o que é o mercado editorial no Brasil; o que é o mercado editorial para no Brasil para uma mulher; para uma mulher branca, para uma mulher negra, para uma mulher independente, para uma mulher que tem contrato com uma grande editora, mas enfim, eu até perdi meio o foco da pergunta, aqui, porque eu comecei a viajar em todas essas mulheres, e acho que isso acaba resumindo minha resposta: o feminino é a minha grande inquietação literária. O feminino e seus desdobramentos, o feminino e todas as coisas das quais o feminino é privado, e as coisas das quais o feminino é lançado – inúmeros adjetivos que dá para a gente pirar em cima: dos fazeres do feminino.
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