\\ ENTREVERES
O problema não é o azar, como no caso deste arsenal posto, e sim a superstição — há séculos, então, a culpa recairia sobre o arquétipo do gato preto
Por Matheus Lopes Quirino
As cortinas, agitadas, feito saia da Marilyn Monroe estão infladas pela brisa da tarde. Aqui dentro da casa não há brisa. E sim um ar, um tanto gelado, que faz doer as pontas dos dedos. E o indicador pousa no lábio quente. É hora de roer uma unha. E os pés, agitados, evidenciam a ansiedade se manifestar. O chinelo cai no chão. Virado para trás. Dá azar. Mas levantar, de repente, parece-me brusco demais. A vista está cansada, o nariz entupido. E, só nesta sala, a luz é alaranjada. O resto da casa é iluminado por uma luz branca, são estranhas essas luzes brancas. Doem a vista.
De pé, é tempo de revirar o chinelo e fechar a janela. Puxando a cortina, do outro lado do vidro… um susto: um gato! Talvez não fosse a brisa e sim o bichano que mexia a cortina. Outra pérola do azar: gato preto. De olhos esmeralda, roçava nos vasos de plantas, vasos de barro, pequenos e rechonchudos, geladinhos, porosos — certamente havia algum prazer ali, para além da compreensão humana, mas sim felina.
“Comigo ninguém pode”, pimenta rosa, vermelha, preta. Espada de São Jorge. Arruda. Sal grosso dentro do copo, atrás da porta. Dentes de alho dentro. O problema não é o azar, como no caso deste arsenal posto, e sim a superstição — há séculos, então, a culpa recairia sobre o arquétipo do gato preto, como bode expiatório, sendo, na verdade, os gatos brancos culpados por todas as maldades e maldizeres? E os malhados? Laranjas? pelados? Persas? Etecétera! Creio eu em erro humano, daltonismo, preconceito, entre outros. Na certa.
O gato queimaria, se arranharia, seria impelido por uma partícula imaginária a outros ares. Continuou roçando nos vasos, por entre aqueles amuletos orgânicos dispostos ali (todas as plantas usadas em mandingas). O gato era esperto e sociável. Não hesitou em xeretar no canteiro, apanhou com a pata um tomate cereja. Feito inédito para um gato.
*
De volta à casa, pego-me pensando sobre gatos. Todos os gatos encontrados pelas ruas, calçadas, galhos de árvore, muros, túneis, estações de metrô, marquises e terraços, janelas de prédios dos mais variados tamanhos, alturas e espessuras, diariamente. Amuletos? Sinônimos de boa-sorte. Bem-vindas pragas que ronronam. Os melhores guias de uma cidade sob a peste dos ratos.
Observadores e astutos, eles têm lá seus esquemas, nas ruas, nas caixas de areia, alguns têm pedrigree, vivem em casas e comem das latas fechadas. Mais valia até para eles. Gatos teriam partidos? Seriam os negros gatos desvirtuados? Mera invenção dos seres humanos… Eles já superaram as diferenças e andam, sob smokings, elegantes. De traje a rigor, não pensam em sujar as patas, roer uma espinha.
Não lutam contra seus sentidos e desejos, vivem, a seu modo, nos terraços ou nos becos, escutando Sinatra ou Daryl Hall and John Oates. São tentados pela carne quando um roedor passa, ou um passarinho. Há gostos e gostos, mesmo para os felinos. A cadeia alimentar é curiosa, creio que haja mais ratos do que gatos.
Embora o meu, aparentemente, fosse vegetariano e simpático, mexendo ali no canteiro, no tomate cereja. E pelas ruas, esses carnívoros colossais, será, seriam eles capazes de interceptar roedores e, num duelo épico do reino animal, provar de uma vez por todas que as coisas não mudam, os ratos perderão sempre.
Talvez não seja verdade. Tudo é talvez. Dúvida Gato & Rato, introspecção, superstição, cadeia alimentar, tomates cereja. Da bacia da ansiedade, fito os olhos do gato e passeio pela Cidade das Esmeraldas. Fui levado por um furacão, digno de Oz, este entrou pela janela da sala, debaixo das saias de Marilyn.
Comments