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Em defesa dos fracos

Foto do escritor: Frentes VersosFrentes Versos

\\ INFINITUDES

Sim, os fracos estão perdidos, terrivelmente perdidos e desamparados, como uma criança que perde a mãe em praia lotada. Mas não têm máscara, nem muralha, nem disfarce.

Por Isabela Nunes, colaboração para Frentes Versos


O Beijo (1907-1908) - Gustave Klimt.

Há muito tempo se sabe que no mundo existem dois tipos de alma: as fortes e as fracas. Algumas almas que se consideram fortes gostam de exercer domínio sobre as fracas porque têm certo gozo secreto em fingir que: 1. não estão sozinhas; 2. realmente são fortes (ah, sim! como são fortes e sabidas!) e detêm em si a resposta da vida, o universo e tudo mais. Veja bem, elas são, na verdade, fracas. É possível identificar almas fortes, em itálico, muito facilmente: têm ao redor de si uma atmosfera arrogante, carregam sempre uma censura ou crítica pronta para fazer aos outros, parecem, realmente, muito confiantes de si. Parecem saber tudo, não hesitam nem pestanejam: não possuem aquela consciência aguda de si que é pré-requisito para a dúvida. Geralmente, dizem: “é melhor que não faça isso”, ou “você não tem pulso, não tem vontade própria; faça como eu porque eu sei”. Se acham muito inteligentes, essas almas fortes. O que as separa das almas fracas é essa máscara muito específica, confortável, cruel: a de fingir que se sabe o que é a vida em todos os seus pormenores — ou melhor: a de fingir que se sabe e ponto. É por isso que os fortes gostam tanto da companhia dos fracos: sentem inveja porque estes não têm máscara, mas sentem também deleite porque diminuí-los e guiá-los e moldá-los é como afirmar: sou melhor, sou forte, sou iluminado.

Os fracos são aqueles que não aprenderam a disfarçar sua confusão e não conseguem olhar para a arte de viver sem se sentirem um pouco desnorteados, como se a vida fosse uma prova difícil para a qual não estudaram. Não é incomum encontrá-los orbitando os fortes: eles têm sede de aprender a viver; querem que alguém lhes diga como é que se faz, como é que se vive, e estes os sugam, os atraem, os aliciam. Os fracos são os que não souberam fingir. Vivem em honestidade doída, em submissão consciente e dilacerada, na espera ansiosa do dia em que renunciarão ao Outro, se olharão no espelho e perceberão no fundo dos olhos um ponto surpreendido que diz: sou Alguém.

Mas a espera é longa e, num ciclo que se retroalimenta, num tom de racionalidade e sabedoria oca, os fortes desdenham de seus inferiores frouxos, torcem-lhes o nariz e reviram-lhes os olhos, porque, ó! pobres de espírito, só assim podem se elevar. Sentem uma inveja secreta porque os fracos são os únicos que podem se tornar, de fato, fortes — porque não fingem. Não fingem saber coisas que não sabem, ter respostas que não têm. Sim, são fracos. Não são ainda Indivíduos: agarram-se aos outros, aos fortes, porque acham, coitados, que estes guardam a chave que o Universo lhes negou; acham que os fortes perceberam qualquer coisa de concreto e palpável nesse mundo que, na fraqueza, é tão abstrato e inefável. Sim, os fracos estão perdidos, terrivelmente perdidos e desamparados, como uma criança que perde a mãe em praia lotada. Mas não têm máscara, nem muralha, nem disfarce. Estão perdidos, sim, mas estar perdido é o primeiríssimo passo para se encontrar. Não: o primeiríssimo passo para buscar, porque se encontrar pouco importa. Não fingem e por isso são livres em sua incompreensão ardente, sua burrice sincera, sua incansável jornada por respostas (porque como pode todos saberem tanto, e eles tão pouco? não — se não sabem, é preciso perguntar aos outros, a deus, ao chão, às paredes, a si, é preciso perguntar e descobrir. é preciso, ao menos, procurar). Almas fortes invejam as fracas porque, no fundo, reconhecem sua própria verdade secreta, marcada em itálico no fundo de sua consciência: a de que são as mais fracas de todas. Porque imperar sobre o desamparo do outro é fugir do próprio desamparo em covardia narcísica. Porque fingir saber e enganar-se com o teatro do ser elevado e Único entre todos é o primeiro passo para nunca saber nada. Porque achar que já se tem as respostas significa nunca tê-las ou, muito pior, nunca mudá-las. Com ares de guias, de sábios, de ditadores da vida, secretamente os fortes sentem inveja e exercem sua tirania sobre os fracos para que eles nunca se vejam como são, para que nunca percebam que a burrice é uma benção. Para que nunca vejam que força verdadeira é o que vem depois da fraqueza, ao fim de árduas batalhas, quando não se tem mais medo de perguntar e de dizer: não sei.

Sim, a burrice é uma benção. A fraqueza é uma benção.

Porque ser burro e fraco é ponto de partida, não de chegada. E, em meio à corrida sem fim — sim, sem fim, por favor que seja sem fim, por favor que não acabe, que se estenda, que eu nunca chegue, que eu nunca seja forte, que meu ardor de burra continue ardendo, por favor que minha fraqueza tão rica e vasta e viva seja infinita infinita infinita — e em meio à corrida sem fim, em algum lugar secreto e delicioso, aparecerá no fundo dos olhos um ponto surpreendido e maravilhado que diz:

sou Alguém.

e isso é infinitamente melhor do que deter em si qualquer resposta inventada sobre a vida, o universo e tudo mais.


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(Os textos de colaboração não expressam necessariamente a opinião da Frentes Versos)

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